Primeiro Princípio de Charlotte Mason

Primeiro Princípio de Charlotte Mason

Por Art Middlekauff

Tradução do “Charlotte Mason’s First Principle” para o português por Arielle Pedrosa ©2018.

“A ‘Criança é uma pessoa’ será o ponto crucial da nossa Cruzada” (Mason, 1904, p. 10)

O primeiro princípio do resumo de vinte pontos feito por Charlotte Mason é simplesmente:

As crianças nascem pessoas. (Mason, 1989f, p. xxix)

Composto de apenas quatro palavras, é o princípio mais curto deste resumo. Essa economia de palavras tem contribuído para um estado geral de confusão sobre o que Mason quer dizer com essa afirmação. Os intérpretes contemporâneos de Charlotte Mason abordaram esse princípio de várias maneiras.

1. Alguns intérpretes consideram que o primeiro princípio é primariamente uma afirmação sobre a natureza do homem e não sobre a natureza das crianças. Por exemplo:

Charlotte Mason compreendeu isso, e não é por acaso que ela começa sua série de princípios educacionais dando sua resposta a essa questão de séculos ― “o que é o homem?” Ela sabia que toda filosofia, incluindo toda filosofia da educação, deveria começar e se desenvolver naturalmente em torno de uma compreensão escolhida do homem e permanecer consistente com essa concepção. (Glass, 2014, p. 12)

2. Outros intérpretes veem no primeiro princípio uma declaração da continuidade do ser entre crianças e adultos. Acredita-se que Mason esteja simplesmente afirmando que, ontologicamente, crianças e adultos são o mesmo tipo de coisa. Por exemplo, sugeriu-se que o primeiro princípio de Mason afirma o que havia sido previamente afirmado por Santo Agostinho:

Tu, portanto, ó Senhor meu Deus, que deste vida à criança, e uma moldura que, como vemos, dotaste de sentidos, compactaste com membros, embelezaste com forma e, para seu bem e segurança gerais, introduziste todas as energias vitais… (Agostinho, 1886, p. 48)

Segundo essa interpretação, o primeiro princípio de Mason é visto dentro das declarações bíblicas que demonstram a presciência de Deus sobre a vida futura de uma criança:

Assim veio a mim a palavra do Senhor, dizendo:
Antes que te formasse no ventre te conheci,
e antes que saísses da madre, te santifiquei;
às nações te dei por profeta.”(Jeremias 1: 4-5)

Os teus olhos viram o meu corpo ainda informe;
e no teu livro todas estas coisas foram escritas;
as quais em continuação foram formadas,
quando nem ainda uma delas havia. (Salmo 139: 16)

3. Alguns intérpretes sugerem que o primeiro princípio é primariamente uma reação à teoria da evolução, introduzida por Charles Darwin com sua publicação de A Origem das Espécies em 1859. Essa interpretação é baseada na refutação que Mason aponta contra o seguinte erro:

Um bebê é uma enorme ostra (diz um eminente psicólogo) cuja tarefa é comer, dormir e crescer. (Mason, 1896, p. 852)

O “eminente psicólogo” indicou que havia sido influenciado pela teoria da evolução; desta forma, o primeiro princípio de Mason é visto como um simples corretivo para uma ideia científica do final da era vitoriana. Supõe-se então que Mason esteja meramente defendendo um retorno a um conceito pré-científico e tradicional da natureza da criança.

4. Finalmente, alguns intérpretes entendem que o primeiro princípio tem um alcance estreito e incidental ou, na melhor das hipóteses, complementar aos outros dezenove princípios, ao invés de fundacional e necessário para uma compreensão adequada do método de Mason.

Em contraste com essas várias abordagens de interpretação, alguns sugerem que o primeiro princípio de Mason é uma verdade profunda com extrema relevância para a igreja moderna. Por exemplo, Susan Schaeffer Macaulay escreve:

Esta primeira proposição da filosofia educacional de Charlotte Mason pode parecer apenas uma afirmação do óbvio. Mas quero enfatizar que não é um elemento secundário de uma verdade maior. É uma verdade central por si só e, ignorá-la poderá resultar em grande tristeza e negligência. (Macaulay, 1984, p. 12)

Como podemos julgar entre todos esses diferentes pontos de vista que giram em torno do significado do princípio de quatro palavras de Mason? Como podemos entender corretamente a intenção de Mason por trás dessa frase? A resposta começa com uma compreensão da história dos escritos de Mason e o desdobramento de sua teoria da educação ao longo do tempo.

O desvelamento da teoria da educação de Mason ocorreu em sua série de palestras em Bradford no inverno de 1885. Essas palestras foram coletadas e publicadas em 1886 sob o título de Educação no Lar. Mason revisou significativamente a obra Educação no Lar em edições posteriores, mas ainda é possível consultar a edição original para determinar os conceitos fundamentais da teoria da educação de Mason. Mais tarde, ela testificou que a edição original de Educação no Lar “contém o todo na semente” de sua teoria da educação (Mason, 1904, p. 2). No entanto, o volume original não contém a frase “crianças nascem pessoas”, ou mesmo a palavra “pessoas” em conexão com crianças, exceto por uma observação incidental.

De fato, a frase “crianças nascem pessoas” não aparece nas obras impressas de Mason até a publicação do próprio Resumo em 1904, em um total de 19 anos depois das palestras em Bradford. Mason oferece seu primeiro tratamento dedicado ao conceito em um artigo da Parents’ Review de 1911, bem depois da conclusão do quinto volume da Série Educação no Lar. O artigo de 1911 intitulado “As Crianças Nascem Pessoas” (Mason, 1911a) deve então ser visto como a explicação definitiva do que Mason quis dizer com o princípio, visto que nenhum outro segmento de seus escritos está tão explicitamente ligado à frase.

Sabemos que Mason acreditava que este era um documento importante, uma vez que o publicou como um livreto autônomo várias vezes depois de sua primeira aparição na revista Parents’ Review. A Coleção Digital Charlotte Mason contém uma edição de 1921 do livreto (intitulado “Crianças Como ‘Pessoas’”), bem como uma edição de 1923. O documento também foi incluído em The Story of Charlotte Mason, de Essex Cholmondeley, onde aparece nas páginas 220 a 233, sob o título “Crianças Enquanto ‘Pessoas’”. A nota de rodapé diz: “Escrito em 1911 e revisado duas vezes por Charlotte Mason” (Cholmondeley, 2000, p. 220).

Aprendemos sobre o propósito do artigo original de 1911 a partir de uma importante carta de Mason para Henrietta Franklin. Mason escreve:

Sobre o meu artigo, faça o possível para imprimi-lo como un panfleto, apesar de que uma boa parte disso já foi dita antes, —mas eu desejo estabelecer com ele a ideia de uma “razão”. (Mason, 1911b, p. 16)

Esta carta fornece a chave interpretativa para o artigo “As crianças nascem pessoas”. Mason explica que ela escreveu o artigo de 1911 como uma forma de coletar uma série de conceitos previamente expressos sob uma única ideia unificadora. Isso indica que muitos conceitos no artigo “As crianças nascem pessoas” devem ter precedentes anteriores nos escritos de Mason. Podemos encontrar esses precedentes por um estudo cuidadoso do artigo, no qual identificamos ligações com ideias anteriores nos escritos de Mason. Isso, então, nos permite abordar todos os escritos de Mason com uma visão completa de seu primeiro princípio.

Todas as referências ao artigo (Mason, 1911a) feitas aqui mencionarão o número do parágrafo. Uma versão do artigo de Mason de 1911 com parágrafos numerados pode ser encontrada aqui. O conteúdo de “As crianças nascem pessoas” é resumido no penúltimo parágrafo do texto:

Consideramos por hora, ainda que de maneira inadequada, a grandeza da criança como pessoa, a liberdade que lhe é devida como pessoa, algumas formas de opressão que interferem em sua liberdade peculiar (a maioria das quais vem sobre ela a partir de fora), e o alimento pelo qual ela deve viver – Admiração, Esperança e Amor. (Mason, 1911a, ¶30)

Este parágrafo nos revela o delineamento do artigo, que é composto de quatro seções:

  1. “a grandeza da criança como pessoa”
  2. “a liberdade que lhe é devida como pessoa” e “algumas formas de opressão que interferem em sua liberdade peculiar”
  3. “o alimento pelo qual ela deve viver”
  4. Observações conclusivas

1. A Grandeza da Criança Como Pessoa

Mason começa seu artigo descrevendo “a grandeza da criança como pessoa”. Nesta seção de abertura, ela volta às páginas iniciais de Educação no Lar para explorar a natureza da criança, e as qualidades que tornam uma criança diferente de um adulto.

Depois de citar “Despondency Corrected”, de William Wordsworth (c. 1806), Mason descreve o erro que ela deseja corrigir:

(…) Consideramos uma pessoa como um produto e possuímos uma espécie de fórmula inconsciente, algo assim: ofereça tais e tais condições de civilização e educação, e teremos tal e tal resultado, com variações. (Mason, 1911a, ¶1)

Segundo Mason, a maioria das pessoas vê as outras como produtos. Elas não entendem o “mistério de uma pessoa”. Se o fizessem, não errariam na educação e em outros campos:

Esta doutrina do mistério de uma pessoa é muito saudável e necessária para nós nestes dias; se nos esforçássemos para entende-la, não tropeçaríamos como acontece em relação aos nossos esforços de reforma social, educação, relações internacionais. (Mason, 1911a, ¶1)

No segundo parágrafo, Mason explica que “o mistério de uma pessoa é de fato divino” (Mason, 1911a, ¶2). Porque o mistério de uma pessoa é divino, afirma Mason, a personalidade não tem limites e não pode ser medida.

Mason, então, declara que o primeiro princípio é revolucionário:

Acreditamos que o primeiro artigo do credo educacional da P.N.E.U ― “crianças nascem pessoas” ― tem um caráter revolucionário; pois o que é uma revolução senão uma inversão completa de atitude? E no momento em que tivermos adotado essa ideia singular, digamos, daqui a uma ou duas décadas, descobriremos que mudamos de rumo, invertemos nossa atitude em relação às crianças, não apenas em algumas poucas particularidades, mas completamente. (Mason, 1911a, ¶3)

No quarto parágrafo, Mason revela que o primeiro princípio não é uma afirmação de uma continuidade entre crianças e adultos. Mason não está simplesmente afirmando que, ontologicamente, crianças e adultos são o mesmo tipo de coisa. Em vez disso, está dizendo que a “imensidade” da pequena criança é na verdade superior que a da pessoa madura:

… A imensidade de uma pessoa e a superior imensidade da pequena criança… (Mason, 1911a, ¶4)

Por que Mason escolheu usar a palavra imensidade? Por causa de sua ocorrência no poema de 1804 de Wordsworth, “Ode. Intimations of Immortality”, descrevendo a criança:

Tu, cuja aparência exterior esconde

de tua alma a imensidade;

Tu, melhor filósofo, que preservas ainda
Sua herança; tu, que entre os cegos tens enxergado… (Wordsworth, 1828, p. 250)

Essas linhas estão entre as 23 linhas da ode, citadas por Mason na página 8 da edição de 1886 de Educação no Lar. Ao invés de citar todas as 23 linhas como ela fez em 1886, neste artigo de 1911, Mason inclui apenas frases-chave das estrofes citadas:

… Quando o poeta diz: “Tu, melhor filósofo”, “tu, que entre os cegos tens enxergado”, “Sempre mais, pela mente eterna, assombrado”, “Poderoso profeta! Abençoado vidente!”, e assim por diante ― frases que todos nós conhecemos de cor, mas quantos de nós percebemos? (Mason, 1911a, ¶4)

Em 1886, Mason coloca essas frases na estrofe original de Wordsworth:

Tu, melhor filósofo, que preservas ainda
Sua herança; tu, que entre os cegos tens enxergado
Que, surdo e mudo, melhor compreendes a profundidade eterna,
Sempre mais, pela mente eterna, assombrado

Poderoso profeta! Abençoado vidente!

(Mason, 1886, p. 8)

O poema é citado em uma seção do livro Educação no Lar intitulado “O Estado da Criança” (p. 7), que permanece na página 9 da edição de 1886. Mason evoca essa seção de seu primeiro livro da filosofia educacional ao incorporar diretamente o título da seção neste artigo de 1911:

Mas talvez esta última afirmação não seja tão certa; talvez o imposto territorial do Estado da Criança seja realmente inevitável, e cabe a nós, pais e responsáveis, investigar a propriedade e fornecer os rendimentos. (Mason, 1911a, ¶4)

Mas, apesar da linguagem nobre e poética de Wordsworth sobre a criança, Mason diz que as palavras dele foram insuficientes. “Wordsworth teve vislumbres da verdade” (Mason, 1911a, ¶4). Ele viu apenas um vislumbre da verdade ― não a plenitude dela. Onde Wordsworth foi insuficiente? E onde está a verdade mais completa a ser encontrada? Mason responde a essas perguntas em 1886. Na seção “O Estado da Criança”, ela escreve:

Por meio de toda esta grande ode que, depois da Bíblia, mostra a percepção mais profunda sobre o que é peculiar às crianças em seu estado e natureza. (Mason, 1886, p. 8)

Isso mostra claramente que Mason acredita que o único documento que revela a natureza das crianças de forma apropriada é a Bíblia; o segundo melhor é este poema de Wordsworth. Mas onde na Bíblia encontramos este ensinamento?

“Dos tais é o reino dos céus”. “Se não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”. “Quem é o maior no reino dos céus?” “E Ele, chamando uma criança, colocou-a no meio deles”. Aqui está a estima divina pelo estado da criança. Vale a pena para os pais ponderar cada enunciado nos Evangelhos sobre as crianças, despojando-se da noção de que estas citações dizem respeito, em primeiro lugar, a pessoas crescidas que se tornaram como crianças. (Mason, 1886, pp. 8-9)

Este ensino é encontrado nos lábios de Cristo. E Mason encontra nestas palavras algo muito maior do que as afirmações elevadas de Wordsworth:

O que são estas profundas palavras, e o quanto elas podem significar, está além da nossa discussão; aqui, contudo, elas parecem cobrir muito mais do que Wordsworth reivindica para as crianças em sua sublime chegada “Percorrendo nuvens de glória, viemos de Deus, com quem habitamos”. (Mason, 1886, p. 9)

As ligações claras entre este parágrafo de “As Crianças Nascem Pessoas” e da obra Educação no Lar demonstram que as declarações de Mason sobre “O Estado da Criança” em Educação no Lar, pp. 7-9, devem ser vistas como essenciais para a compreensão do primeiro princípio.

Mason continua no parágrafo seguinte contrastando crianças com adultos ao afirmar que crianças pequenas têm uma habilidade maior de apreciar a maravilha de todas as coisas (Mason, 1911a, ¶5).

Mason então indica que temos apenas duas opções: “Ou reverenciamos ou desprezamos as crianças” (Mason, 1911a, ¶6). Nós desprezamos as crianças quando as consideramos “seres incompletos e rudimentares” (Mason, 1911a, ¶6). Mason escolhe a palavra desprezar porque é a palavra que Cristo usou:

Todos nos lembramos do aviso divino: “Guardai-vos de não desprezar um destes pequeninos” (Mason, 1911a, ¶6)

@here Esta é uma referência direta de Mason ao que ela se citou em 1886 como o “código de educação nos Evangelhos”:

Pode surpreender os pais que não têm dado muita atenção ao tema descobrir igualmente um código de educação nos Evangelhos, expressamente estabelecido por Cristo. Ele é resumido em três mandamentos, e todos os três têm um caráter negativo, como se a coisa mais necessária exigida das pessoas adultas é que elas não causem nenhum tipo de prejuízo às crianças:
Guardai-vos de não OFENDER — não DESPREZAR — não IMPEDIR — um destes pequeninos. (Mason, 1886, p. 9)

A próxima frase mostra que o código é abrangente:

Então, corramos às três leis educacionais do Novo Testamento, que, quando analisadas isoladamente, parecem-me cobrir toda a ajuda que podemos dar às crianças e todo o mal de que podemos salvá-las — isto é, tudo o que está incluído na formação da criança no caminho em que deve andar. (Mason, 1886, p. 9)

Este código de educação de Cristo não é um pequeno detalhe que influencia apenas uma pequena porção da teoria da educação de Mason. Em vez disso, Mason baseia todo o seu método nisso. Por exemplo, ela apela a essas palavras de Cristo como seu mandato para proibir lições chatas:

Quase tão ruim é a maneira como a vida intelectual da criança pode ser destruída desde o início por uma rodada de lições monótonas e inúteis… (Mason, 1886, p. 12)

Assim, vemos que o primeiro princípio de Mason se destina a evocar o “código de educação nos Evangelhos”, que é a base distintamente cristã de Mason para sua filosofia de educação.

Prosseguindo em contrastar as crianças dos adultos no próximo parágrafo, Mason fornece uma lista de maneiras pelas quais as crianças são superiores às pessoas maduras:

  • precisão de observação
  • intensidade de experiência emocional
  • capacidade de amar verdadeiramente
  • fertilidade da imaginação
  • velocidade de aprendizado

O parágrafo seguinte diz que isso pode parecer “uma declaração absurdamente exagerada dos poderes e progresso de uma criança” (Mason, 1911a, ¶8) ― mas Mason afirma que é uma verdade sóbria.

No oitavo parágrafo, Mason novamente contrasta crianças de adultos ao fornecer uma lista de realizações práticas de crianças em seus primeiros anos de vida, como aprender um idioma. Em seguida, Mason distingue sua visão das crianças não apenas de Wordsworth, mas também do evolucionista:

Estou considerando uma criança como ela é: não com Wordsworth, nas alturas além, nem com o evolucionista, nas profundezas aquém; porque uma pessoa é um mistério; isto é, não podemos explicá-la ou prestar esclarecimentos sobre ela, mas devemos aceitá-la como é. (Mason, 1911a, ¶8)

No último parágrafo da primeira seção, Mason afirma que as crianças têm tendências malignas e, contudo, são inocentes. Isto é uma reminiscência do segundo princípio de Mason: “[As crianças] não nascem boas ou más, mas com possibilidades para o bem e para o mal” (Mason, 1989f, p. Xxix). Deste modo, o segundo princípio pode ser entendido como um corolário do primeiro.

Mason igualmente continua a citar Cristo como o fundamento de sua filosofia: “Cristo descreve … a humildade das pequenas crianças” (Mason, 1911a, ¶9).

Mason conclui esta seção com uma resposta direta às pessoas que podem assumir que seu primeiro princípio não érevolucionário. Para aqueles que pensam que “crianças nascem pessoas” não é nenhuma novidade, Mason escreve:

“É claro que devemos”, você afirma; “o que mais o mundo faz senão aceitar uma criança como algo natural?”… Mas não estamos indo rápido demais? Nós realmente aceitamos as crianças como pessoas…? (Mason, 1911a, ¶9)

2. A Liberdade Devida a Ela Como Pessoa e Algumas Formas de Opressão que Interferem Em Sua Liberdade Peculiar

Nesta segunda seção, Mason passa da natureza e atributos da criança para os direitos inerentes da criança. Ela enumera seis direitos distintos que a criança possui em virtude de ter nascido uma pessoa. Ela se refere a estes como “a Carta de Direitos da Criança” (Mason, 1911a, ¶14), termo que levantou as sobrancelhas de pelo menos um educador clássico (Natal, 1999).

De acordo com Mason, a ideia que unifica os vários direitos da criança é a “liberdade”. A liberdade é o direito mais “inalienável e sagrado de uma pessoa enquanto pessoa” (Mason, 1911a, ¶10). Mason afirma que esta é uma nova revelação: “Os pais têm suspeitado disso por uma ou duas gerações” (Mason, 1911a, ¶10). O que os pais “suspeitaram” (desde cerca de 1800), Mason irá revelar mais completamente nos parágrafos subsequentes. Os pais têm suspeitado disso desde a época de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que “foi o primeiro a reconhecer que as crianças nascem pessoas” (Armfield, 1906, p. 77).

Antes de enumerar os direitos específicos, Mason lança as bases declarando que a obediência só pode ser ensinada corretamente com base na autoridade moral (Mason, 1911a, ¶11). Esta é uma reafirmação do terceiro princípio de sua sinopse, indicando a ligação direta entre os princípios 1 e 3.

Direito # 1: Ser Livre da Licenciosidade

No décimo primeiro parágrafo, Mason escreve:

… O primeiro dever dos pais é ensinar às crianças o significado de dever; e a razão pela qual alguns pais deixam de conseguir uma obediência pronta e alegre de seus filhos é que eles não reconhecem o “dever” em suas próprias vidas. (Mason, 1911a, ¶12)

Este é um paralelo direto de sua escrita em 1886:

A criança nunca descobriu um fundo de necessidade por trás das decisões da mãe; ela não sabe que a mãe não deve deixá-la quebrar os brinquedos de sua irmã, encher a barriga com bolo, estragar o prazer de outras pessoas, porque estas coisas não são corretas. Que a criança perceba que seus pais estão obrigados pela lei, assim como ela, e que eles simplesmente não podem permitir que ela faça coisas que foram proibidas, e ela se submeterá com uma doce mansidão pertencente à sua idade. (Mason, 1886, pp. 11-12)

Ao referir-se novamente às páginas iniciais de Educação no Lar, Mason mostra que a frase “As crianças nascem pessoas” destina-se a englobar seus ensinamentos a partir de 1886, embora ela não tenha usado o termo pessoa na época.

No parágrafo seguinte, Mason indica que o pai também está sob autoridade (Mason, 1911a, ¶13). Isto está intimamente relacionado com o quarto princípio da sua discussão, indicando a ligação direta entre os princípios 1 e 4. Novamente, a ideia também é apresentada pela primeira vez nas páginas iniciais de Educação no Lar:

Que a criança perceba que seus pais estão obrigados pela lei, assim como ela, e que eles simplesmente não podem permitir que ela faça coisas que foram proibidas, e ela se submeterá com uma doce mansidão pertencente à sua idade. (Mason, 1886, p. 12)

Direito #2: Ser Livre da Auto-Consciência

No parágrafo seguinte, Mason escreve:

O próximo artigo na Carta de Direitos da Criança é aquela liberdade que chamamos de inocência, e que encontramos descritos nos evangelhos como humildade. (Mason, 1911a, ¶14)

O pai não deve tornar seu filho auto-consciente. Mason encontra a base para este direito não na tradição clássica, mas nos ensinamentos de Cristo. Neste artigo, Mason parte do ensinamento de Cristo sobre a natureza da criança para chegar a este direito da criança como encontrado “nos Evangelhos.”

Direito #3: Ter Acesso ao Banquete

No 15º parágrafo, Mason observa que:

Nosso trabalho em assegura que as crianças sejam livres da tirania deve ser tanto positivo quanto negativo; não é o suficiente que nos abstenhamos de olhares ou palavras capazes de fazerem os pensamentos de uma criança se voltarem a si mesmas, mas devemos torná-la senhora de sua herança e dar-lhe muitas coisas deleitosas em que pensar… (Mason, 1911a, ¶15)

O uso que Mason faz das palavras “positivo” e “negativo” é novamente uma alusão direta à sua primeira exposição do “Código da educação nos Evangelhos” de 1886:

Mas, na realidade, o positivo está incluso no negativo: o que estamos obrigados a fazer em benefício da criança está incluso no que estamos proibidos de fazer em seu malefício. (Mason, 1886, p. 9)

Assim, vemos que o décimo primeiro princípio do Resumo é derivado diretamente do primeiro:

11 Mas, acreditando que a criança normal tem os poderes mentais apropriados para lidar com todo o conhecimento que lhe é apropriado, devemos dar a ela um currículo completo e generoso; cuidando apenas para que o conhecimento que lhe é oferecido seja vital — ou seja, que os fatos não sejam apresentados sem suas ideias esclarecedoras. (Mason, 1989f, p. Xxx)

Vemos ainda um outro princípio deduzido por Mason da natureza da criança, como é entendida a partir das palavras de Cristo nos Evangelhos.

Direito # 4: Ser Livre do Egoísmo

Mason, em seguida, afirma que todas as crianças têm o direito de serem livres da tirania do egoísmo, e que isto impõe sobre os pais a responsabilidade de educar seus filhos corretamente. Mason fornece essa orientação:

É difícil escapar da tirania do egoísmo; mas algum conhecimento da natureza humana, do fato de que a criança tem, naturalmente, outros desejos além daqueles que tendem a auto-gratificação, que ela ama para ser amado, por exemplo, e que ela ama o conhecimento, que ela ama  servir e dar, ajudará seus pais a restaurarem o equilíbrio de suas qualidades e livrarem a criança de se tornar escrava de seu próprio egoísmo. (Mason, 1911a, ¶16)

Mason alega que um método de ensino baseado em prêmios e competições fortalecerá o impulso do egoísmo ao invés de enfraquece-lo. Mas ela conclui que um método de educação baseado no desejo da criança pelo conhecimento ajudará a livrar a criança a desta tirania. Daí, vemos que a abordagem de Mason à motivação está diretamente ligada à sua compreensão da criança como pessoa.

Direito # 5: Ser Livre Para Pensar

Mason escreve: “Outra liberdade que devemos reivindicar para as crianças é a liberdade de pensar” (Mason, 1911a, ¶17). Pais e professores não podem violar os direitos inerentes de seus filhos, impondo ou implantando pensamentos, ideias e opiniões. A criança deve ser autorizada (e incentivada a) pensar por si mesma.

Direito # 6: Ser Livre da Superstição

O sexto direito da criança é talvez o mais importante. Mason escreve: “A última tirania que podemos considerar é a da superstição” (Mason, 1911a, ¶18). De acordo com Mason, a única maneira de garantir essa liberdade está em ensinar e formar o conhecimento de Deus:

Se não queremos nossos filhos expostos a horrores que são muito terrível aos jovens, o nosso recurso é dar-les o conhecimento de Deus, e “a verdade os libertará” (Mason, 1911a, ¶18)

Citando João 8:32, Mason revela mais uma vez que está olhando para Cristo em busca de orientação. Com efeito, neste parágrafo, ela mostra que esta resposta não era conhecida pelos pensadores clássicos pré-cristãos:

As tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides têm, todas elas um único tema terrível: o jogo arbitrário e irresponsável dos deuses sobre o destino humano. De fato, já se afirmou muito bem que a tragédia na era cristã é impossível, porque a falta de esperança de qualquer situação implica a má vontade dos deuses; e cito como um fato curioso que  das três das grandes tragédias de Shakespeare duas se passam em tempos pré-cristãos, e a terceira é provocada por uma pessoa não-cristã. (Mason, 1911a, ¶18)

Alguém pode alegar que a educação não pode ensinar o conhecimento de Deus, e que tal conteúdo espiritual e religioso está fora do alcance de pais e professores. Mas Mason insiste que este não é o caso, por causa do 20º princípio de seu Resumo:

É necessário fazer com que as crianças se reconheçam como espíritos, para que possam perceber que o acesso do Espírito divino aos seus espíritos é fácil e necessário, que elas possuem um Amigo íntimo, invisível, com elas por todos os seus dias, que o Todo-Poderoso está em volta deles para os proteger e nutrir, que eles estão seguros nas mãos de seu amoroso Todo Poderoso, de forma que os  poderes das trevas não podem se aproximar.” (Mason, 1911a, ¶18)

Vemos ainda um outro princípio deduzido por Mason diretamente das palavras de Cristo nos Evangelhos.

Ela conclui sua apresentação da “Carta de Direitos das Crianças”, insistindo sobre a responsabilidade parental:

… se o lugar de uma criança é um céu bem ordenado, ele agradece a seus pais por seu estado de felicidade; e, se ela está condenada a um “inferno” de inquietação, desejos ardentes e ressentimentos, seus pais estão isentos de culpa? (Mason, 1911a, ¶19)

Mason está reafirmando as responsabilidades dos pais que ela identificou pela primeira vez quase 30 anos antes em sua série de palestras:

E esta responsabilidade não é dividida igualmente entre os progenitores: é das mães do presente que o futuro do mundo depende em grau muito maior do que dos pais, porque as mães possuem a total direção dos primeiros anos da criança, os anos mais impressionáveis. (Mason, 1886, p. 2)

3. O Alimento Pelo Qual Ela Deve Viver

No 20º parágrafo, Mason passa da discussão dos direitos da criança para a discussão de suas necessidades. Ela ressalta que usará três palavras extraídas de “Despondency Corrected” (c. 1806), de Wordsworth, para descrever as três principais necessidades da criança.

Neccessidade # 1: Esperança

Mason alega, primeiramente, que a pessoa vive pela esperança. A evidência primária citada por ela é que “nosso Deus é descrito como ‘o Deus da Esperança’” Visto que alguns podem zombar e dizer: “Qual é o bem da Esperança?”, Mason se opõe afirmando que:

… a esperança é uma possessão real, se não tangível, que, como todas as melhores coisas, podemos pedir e obter. (Mason, 1911a, ¶21)

Necessidade # 2: Amor

No parágrafo seguinte, Mason observa que a pessoa vive pelo amor em muitas dimensões: amar os outros e ser amado por eles, e amar a Deus e ser amado por Ele. Mas estas muitas dimensões formam uma unidade: “Como todo amor implica dar e receber, não é necessário dividir as correntes que se encontram” (Mason, 1911a, ¶22). E esta não é “uma afeição consumista e irracional para qualquer indivíduo”, mas sim “o transbordar do amor interno em todas as direções e o encher-se do amor vindo de todas as fontes” (Mason, 1911a, ¶22).

Mason cita a autoridade bíblica para as três grandes necessidades da criança. Ela equipara a admiração, a esperança e o amor de Wordsworth com a “Fé, esperança, e amor” de São Paulo (1 Co 13:13). Duas das palavras correspondem; Mason, em seguida, equipara a “admiração” com a “fé”. Pela segunda vez, agora, Mason indica quão perto Wordsworth chega da articulação da verdade perfeita da Palavra de Deus:

…toda esta grande ode que, depois da Bíblia, mostra a percepção mais profunda sobre o que é peculiar às crianças em seu estado e natureza. (Mason, 1886, p. 8)

Necessidade # 3: Admiração (Fé)

Mason agora descreve a terceira grande necessidade da pessoa: “admiração” (Wordsworth) ou “fé” (São Paulo). Neste parágrafo, Mason observa que a admiração ou a fé é transmitida para a criança, principalmente através da atmosfera: “É impossível falar muito sobre o assunto” (Mason, 1911a, ¶23). Esta é uma reminiscência do sexto princípio de seu Resumo, indicando a ligação direnta entre os os princípios 1 e 6.

No 24º parágrafo, Mason indica que a coisa mais importante na educação é transmitir o conhecimento de Deus:

[Os pais] acreditam que o conhecimento de Deus, fé em um Deus, é a coisa vital, e é verdadeiramente aquilo que eles estão mais ansiosos que seus filhos devam possuir… (Mason, 1911a, ¶24)

Isto está em contraste com a educação clássica, em que a virtude é o maior objetivo. Alguns podem afirmar que o conhecimento de Deus é um assunto religioso que não pode ser transmitido através da educação. Mas Mason contraria esta ideia, dizendo:

Creio que nos ajudaria percebermos que em nenhum momento de suas vidas as crianças são ignorantes de Deus, que o solo está sempre preparado para esta semente, e que o único cuidado necessário por parte da mãe é evitar chavões e expressões vulgares, e falar com o frescor e fervor de suas próprias convicções. (Mason, 1911a, ¶24)

Uma vez que o conhecimento de Deus é a necessidade natural (não sobrenatural) da criança, este é um foco adequado de educação. E Mason aponta para narração do texto bíblico como um dos principais meios para alcançá-lo (onde a meditação é narração mental):

Penso que nós poderíamos fazer mais uso do que costumamos fazer do hábito da meditação como um meio de atingir o conhecimento de Deus. (Mason, 1911a, ¶24)

Mason explica o que entende por meditação em seu artigo de 1906 que leva este nome:

Mas tudo isso não é meditação? Não; mas afinal, a mãe, ou o professor pode dizer: “você às vezes acorda antes que a cuidadora chege. Se você fizesse isso amanhã, você poderia contar esta história a si mesma sem omitir qualquer palavra”. Esta é uma das coisas agradáveis que a criança ama fazer.; e aqui temos a meditação, não em seu estágio inicial, mas em perfeição; porque este ato de narração mental tem o curioso efeito de trazer aos olhos da mente as pessoas e ações da história, um pouco de como seriam na cinematografia; e, com o avanço da história e da ação dos personagens, as ideias apropriadas à situação descrita vêm à mente ― você medita sentido mais completo da palavra.

Esta forma de meditação pode ser muito bem recomendada para crianças de todas as idades; sua próprias leituras devocionais vespertinas podem ser o assunto de sua meditação matinal, ou vice-versa, como for mais conveniente. (Mason, 1906, p. 708)

Ao equiparar a meditação e a narração, Mason aponta para o 14º princípio de seu Resumo, indicando a ligação direta entre os princípios 1 e 14.

Mason, em seguida, retorna ao tema da esperança e expõe a ideia de que “devemos criar jovens pessoas com este tónico” de Esperança (Mason, 1911a, ¶25). No parágrafo 26, ela descreve mais detalhadamente como a graça da esperança pode ser comunicada às crianças.

No parágrafo seguinte, Mason novamente afirma que o conhecimento de Deus é o maior objetivo e recompensa da vida: “o conhecimento de Deus, é a inefável recompensa colocada diante de nós…” (Mason, 1911a, ¶27). Ao falar de vida, Mason vê uma continuidade radical entre esta vida e a vida futura. Em vez de reduzir a esperança a um anseio pelo próximo mundo, Mason indica que a esperança agora e no futuro é basicamente a mesma:

… não recebemos nenhum indício de mudança de lugar, mas apenas de mudança de estado; portanto, concebivelmente, as obras que começamos, os interesses que estabelecemos, os trabalhos que temos desenvolvido em prol de outros, o amor que nos constrange, ainda podem ser nossas ocupações na vida invisível e, com tal possibilidade diante de nós, pode ser que comecemos a passar nossos dias com seriedade e esforço acrescentados, e com uma Esperança indizivelmente grandiosa. (Mason, 1911a, ¶27)

Mason explica sobre a natureza comum desta vida e da vida futura, em uma carta de 1911 a Henrietta Franklin:

Você se importa que eu lhe peça para ler novamente o Volume 2 dos pequenos livros vermelhos [a série do The Savior of the World] páginas 71-76 e o Volume 3, páginas 106-117. Ali eu tentei explicar, de forma muito crua, o que quero dizer. (Sei que você também recebeu a Jesus como “um professor enviado por Deus” e isso é tudo o argumento requer). Mas quero te explicar porque sinto  que devo prosseguir vivendo por quanto tempo me for permitido. Não olho para qualquer coisa na forma de punição ou recompensa ou compensação mais do que posso obter aqui ― com a única vasta exceção da “vida mais abundante”, isto é, eu penso no conhecimento divino, na consciência divina.

Lá haverá
Muito mais para fazer
Muito mais para saber
Muito mais para ver
Muito mais para amar

No presente, as pessoas só podem ver, saber, fazer e amar, na proporção de suas capacidades, e penso que devemos começar estas coisas enquanto estamos na carne. Continuaremos crescendo nelas em espírito. Todas as pessoas que encontrarmos deveremos conhecer, compreender, primeiro; todas as flores do mundo ― todas as estrelas do universo (e eu não sei nada de astronomia!)

É claro que “Seus servos O servirão” sempre de todas as maneiras e não sabemos qual é a primeira ou a última das formas. Você se lembra de Lázaro de Browning e como coisas intensamente insignificantes o atraíam.

Eu não deveria estar me perguntando se esse é o tipo de Evangelho pelo qual nós estamos esperando e estamos tão cansados de esperar que agimos como crianças cansadas em uma feira. (Mason, 1911c, p. 18)

Mason afirma que, para fixar esta esperança nas crianças, devemos fixa-la primeiro em nossos corações.

Então, no parágrafo vinte e nove, Mason retorna ao tema do amor e indica que a atmosfera é o principal meio para transmitir essa graça às crianças:

Se nós mesmos amamos as coisas que são amáveis, o amor é contagioso, consequentemente, as crianças farão como nós. (Mason, 1911a, ¶29).

4. Observações Finais

No trigésimo parágrafo, já anteriormente citado, Mason revela a estrutura do artigo. E, em conclusão, Mason menciona mais uma vez os mesmos poemas.

Implicações

Em seu artigo, Mason afirma várias vezes que o primeiro princípio é revolucionário. Ela alega  que esta ideia geral só foi considerada anteriormente por “uma geração ou duas” (¶10). Essa perspectiva é explicada em uma palestra anterior para um público da PNEU. Em 24 de novembro de 1906, uma mulher chamada srta. Shakespeare dirigiu-se a um encontro da PNEU em Oakleigh, Duppas Hill. Seu tema foi “A criança na literatura”. Em seu discurso, ela “revisou o tratamento das crianças na literatura mundial até os dias atuais” (Armfield, 1906, p. 77). Somos informados que ela começou falando da Antiguidade:

Ela afirmou que as crianças sempre foram tratadas objetivamente na literatura Antiga e mostrou que foi de forma comparativamente recente, que o ponto de vista havia mudado. Ela leu citações de Homero e outros escritores para provar isso e mostrar o amor apaixonado pelas crianças mesmo naqueles dias. (Armfield, 1906, p. 77)

De acordo com a palestra da PNEU, a visão grega clássica da criança, expressa por Homero e outros, era “objetiva”. Mas “de forma comparativamente recente” algo havia mudado ― a visão contemporânea das crianças não era mais “objetiva” (Armfield, 1906, p. 77).

Na palestra da srta. Shakespeare, ela “[passou] pela Idade Média”, pois “não nos dá nenhuma imagem da infância, nem mesmo a partir da caneta de Chaucer”. Em seguida “a palestrante discorreu sobre as formalidades e cerimônias existentes entre pais e filhos nos séculos XVII e XVIII, citando Montaigne para mostrar até que ponto essas formalidades chegavam”. A srta. Shakespeare destacou particularmente a visão de John Locke:

A palestrante mencionou a visão de Locke da mente de uma criança como uma folha de papel em branco a ser escrita para mostrar como o ponto de vista ainda era inteiramente objetivo. (Armfield, 1906, p. 77)

A srta. Shakespeare, então, descreve uma mudança:

Ela então chega até Rousseau, apontando que ele foi o primeiro a reconhecer que as crianças nascem pessoas, e como desde este dia em diante as ideias sobre as crianças haviam mudado gradualmente até que o ponto de vista se tornou inteiramente subjetivo; os direitos das crianças foram reconhecidos, sua individualidade ganhou espaço para se expandir e elas foram tratadas com um amor sábio e pensante. A srta. Shakespeare ilustrou essa mudança gradual de atitude em relação às crianças por extratos deliciosos e pertinentes da literatura de cada período. (Armfield, 1906, p. 77)

Com o aparecimento de Jean-Jacques Rousseau, as crianças começaram a ser vistas do ponto de vista subjetivo: as crianças passaram a ser vistas como pessoas. Segundo a srta. Shakespeare, as implicações desse ponto de vista foram:

  • “Os direitos das crianças foram reconhecidos”
  • “Foi dado espaço para que sua individualidade expandisse”
  • “elas foram tratadas com um amor sábio e pensante”

Essa perspectiva alinha-se perfeitamente com o conteúdo de “As crianças nascem pessoas”, no qual Mason explicitamente expõe “a Declaração de Direitos da criança” (¶14).

Mason descreve a progressão de pensamento ocorrida entre o tempo de Rousseau e seus dias. Em Parents’ Review, em 1896, Mason diz que “nossos avôs e avós tinham um princípio salvador, que, nas últimas duas ou três décadas, temos labutado para abandonar nas últimas três décadas” (Mason, 1896, p. 851). Os avós de Mason foram pais por volta de 1800, logo após a morte de Rousseau. Algo mudou duas ou três décadas antes do tempo destes escritos de Mason, que se situam entre 1866-1876.

Em 1859, Charles Darwin publicou Sobre a Origem das Espécies. Isso influenciou o pensamento de muitos na época de Mason, incluindo James Sully, que publicou Studies of Childhood em 1895. No artigo de 1896, Mason escreve:

“Um bebê é uma enorme ostra (diz um eminente psicólogo) cuja tarefa é comer, dormir e crescer”. Até mesmo o professor Sully, em seu livro mais encantador, está dividido. As crianças o conquistaram, convenceram-no além de qualquer dúvida de que são como nós mesmos, ou até melhores. Contudo, ele é um evolucionista, e sente-se comprometido a acomodar a criança aos princípios da evolução. (Mason, 1896, p. 852)

Mason descreve uma mudança de atitude que se deveu à influência da teoria da evolução. Note, no entanto, que isso não indica uma mudança na trajetória do pensamento da visão objetiva para a visão subjetiva. Todas as indicações dadas pela descrição de Mason sobre o impacto de Sully e suas ideias são consistentes com uma visão cada vez mais subjetiva das crianças.

No entanto, é importante entender que o primeiro princípio de Mason não pode ser reduzido a uma refutação do conceito evolucionário de “ostra”. Em “As crianças nascem pessoas”, a evolução é mencionada apenas uma vez, mas como uma parte de um quadro muito maior:

Estou considerando uma criança como ela é: não com Wordsworth, nas alturas além, nem com o evolucionista, nas profundezas aquém; porque uma pessoa é um mistério; isto é, não podemos explicá-la ou prestar esclarecimentos sobre ela, mas devemos aceitá-la como é. (Mason, 1911a, ¶8)

Lembre-se que, de acordo com Mason, Wordsworth, “depois da Bíblia, mostra a percepção mais profunda sobre o que é peculiar às crianças em seu estado e natureza.” (Mason, 1886, p. 8). Para Mason, a plenitude é encontrada nas palavras de Cristo e, se nos apropriarmos dessas palavras pela fé, entraremos numa revolução. Edward Lyttelton, ex-diretor da Eton, reconheceu a natureza revolucionária da “visão subjetiva” de Mason sobre a criança:

Lyttleton [sic], falando em 1922, dissera que C. M. Mason realizou “a grande descoberta educacional daquela era”.

“A descoberta”, disse Elsie Kitching, “é que as pessoas têm mentes e que as mentes precisam de relações e que as relações são inspiradas pelo Espírito Santo” (Cholmondeley, 1956, p. 6).

Um teste útil para ver se um pai ou professor entende o primeiro princípio é considerar essas palavras de Mason:

Agora coloque um professor diante de uma classe de pessoas ― da beleza e imensidão de cada uma, as quais tentei apontar ―, e ele dirá: “O que tenho para lhes oferecer?” Suas lições rotineiras se desintegram no pó que são quando ele se depara com as crianças tal como são.

Tiramos nossos sapatos dos pés; nós “não sabíamos o que havia neles”, que sejamos seus pais, seus professores ou meros espectadores. E com algum sentimento de admiração sobre nós, estaremos melhor preparados para considerar como e sobre o quê as crianças devem ser educadas. (Mason, 1989f, pp. 44-45)

Se olharmos para nossos filhos e não tivermos esse “sentimento de admiração”, não entenderemos o primeiro princípio de Mason. Se nossas aulas rotineiras não se desintegram no pó, então não nos deparamos com as “crianças tal como são”. Se não reconhecermos nossa própria pobreza e perguntarmos “O que tenho para lhes oferecer?”, então ainda não entramos na revolução.
Mason afirma que as crianças nascem com vários poderes:

  • “todos os poderes necessários para perceber e se apropriar de todo o conhecimento, toda a beleza e toda a bondade” (Mason, 1911a, ¶15)
  • “o grau de poder para lidar com o conhecimento que lhe pertencerá enquanto homem” (Mason, 1989e, p. 363)
  • “toda a mente requerida para suas ocasiões próprias” (Mason, 1989f, p. 36)

A implicação disso é que devemos abandonar a noção clássica de ensinar aos nossos filhos as ferramentas de aprendizagem:

Portanto, nossa tarefa é alimentá-la diariamente com o conhecimento que lhe seja apropriado … em vez de fornecer-lhe as ferramentas para lidar com o conhecimento, ou mesmo torná-lo um especialista no uso dessas ferramentas… (Mason, 1989e, p. 363 )

Além disso, devemos reconhecer os direitos da criança. Nos outros escritos de Mason, ela enumera direitos adicionais das crianças como pessoas, não enumeradas em seu artigo de 1911:

    • “o direito de cada indivíduo se desenvolver nas linhas de seu próprio caráter” (Mason, 1989c, p. 138)
    • “nosso primeiro cuidado deve ser preservar a individualidade, dar ação à personalidade, das crianças” (Mason, 1989a, p. 186)
    • não podemos interferir diretamente n a personalidade da criança ou do adulto” (Mason, 1989c, p. 183)
    • não podemos cometer uma ofensa maior do que mutilar, esmagar ou subverter qualquer parte de uma pessoa” (Mason, 1989f, p. 80)

É impossível exagerar a importância fundamental do primeiro princípio para a teoria educacional de Mason. Vimos no artigo de 1911 que os princípios 2, 3, 4, 6, 11, 14 e 20 são todos derivados do princípio 1. De fato, Mason afirma que “a ‘criança enquanto uma pessoa’ será o cerne da nossa cruzada” (Mason, 1904, p. 10). É inconcebível que o ponto crucial da cruzada seja um retorno à filosofia clássica. Em vez disso, o artigo de Mason de 1911 alude diretamente à sua concepção de 1886 do “código de educação nos Evangelhos”, que engloba “tudo o que está incluído no treinamento de uma criança no caminho que deve andar” (Mason, 1886, p. 9). Vemos então que o “ponto crucial de nossa Cruzada” é nada menos que o código de educação nos Evangelhos.

Assim, vemos que o princípio “As crianças nascem pessoas” é uma declaração importante que contém uma infinidade de ideias derivadas. Após a morte de Mason, foi visto como uma regra fundamental para identificar o que é fiel ao seu método:

[Mason] sempre testou cada nova ideia pelos princípios subjacentes de sua filosofia ― “Uma criança é uma pessoa” e, como tal, requer alimento para a alma e mente assim como o corpo. (Franklin, 1927, p. 182)

Essa regra é aplicável ainda hoje. Qualquer interpretação que não suporte este teste é um falso método Mason. Abrace este teste e entre na revolução hoje. Essas ideias ainda têm o poder de mudar o mundo, um pai ou professor de cada vez. O próximo a mudar pode ser você.

References

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