Nossos Corpos, Nossas Almas

Nossos Corpos, Nossas Almas

Livro I

Autoconhecimento

Por

Charlotte M. Mason

‘Eu sou, eu posso, eu devo, eu vou’

Tradução baseada na edição de 1924 com o nome original de ‘Ourselves’. Nenhuma adição foi feita ao texto original, exceto pelos números das página originais incorporados no texto. A tradução é copyright © Tina Schallhorn. É permitido o uso pessoal e não comercial. Para todas as outras solicitações, entre em contato com o proprietário dos direitos autorais.

[p v]

Prefácio

“Quão bela é a humanidade!”—A Tempestade.

Eu acredito que jovens leitores via de regra nunca leem um prefácio; mas será que eles podem gentilmente ler este prefácio em particular, já que tenho algo a dizer que se destina a eles e não aos mais velhos?

Agora que sou uma mulher de idade, lembro-me muito vividamente, de dois fatos sobre o tempo em que eu era ‘adolescente’. Sentia que ter chegado a idade da adolescência era um avanço na vida que significava mais responsabilidade, e sinceramente queria saber o que deveria fazer e ser. Eu não pedia conselhos a meus pais ou anciãos (talvez os jovens raramente façam isso), mas eu gostava de pegar algumas dicas de livros que me ajudariam a entender-me melhor. Lembro-me especialmente de um volume, uma coletânea dos clássicos sobre os quais eu costumava refletir. Fábulas de Esopo, ditados de La Rochefoucauld e até Cartas para seu filho, de Lorde Chesterfield, estudei por iniciativa própria, embora eu não queira transmiti-las todas para o leitor. Mas eu queria algo mais, alguma noção de mim como um [p vi] todo, para poder saber o que era possível a mim; e isso eu nunca consegui obter.

Havia também outro sentimento de que me recordo muito bem. Fui provada e sentia-me deprimida em momentos singulares, por um grande senso de indignidade, não tanto por qualquer razão em particular, mas porque considerava-me algo pobre, insignificante, e que não havia muito em mim. Suponho que esse sentimento tenha surgido de outro—uma sensação de grandeza de mente e coração que, de alguma forma, eu não conseguia captar e mostrar em minha vida. Esses dois sentimentos levaram-me a viver com objetivos opostos às pessoas ao meu redor, isto é, em meu coração, pois externamente, as coisas corriam bem. Se meus amigos gostavam de mim e me estimavam, eu acreditava que eles estavam enganando a si mesmos, e não sabiam o quão insignificante eu era; enquanto, se eles me criticavam, eu recorria à bondade e valor que eu sentia de alguma forma pertencer a mim, e me recusava a sentir que tinha sido tratada injustamente.

Acredito que esses dois sentimentos, ou melhor, três, são comuns a todos os meninos e meninas na adolescência. Todos sentem que a vida é um assunto grande e sério; e que eles próprios são pessoas responsáveis, com um papel importante a desempenhar. Eles querem conhecer as regras do jogo, e eles captam dicas, muitas vezes enganosas, aqui e ali. Eles pensam, até mesmo o mais convencido deles, que são no final, seres insignificantes; mas também eles sabem que em algum lugar dentro deles há grandeza de mente e bondade de coração—uma mina de riqueza, se eles pudessem ao menos produzi-la!

[p vii]

Esses três sentimentos são guias confiáveis. Nós somos pobres pessoas, nós temos grandes possibilidades, e nós precisamos desesperadamente de orientação.

É um conforto que não estamos sozinhos em nossos sentimentos. Essa nossa natureza desconcertante, que não podemos compreender, é, afinal de contas, a natureza humana, e o que queremos ver é uma espécie de panorama da natureza humana, com suas alturas e profundidades, suas esperanças e seus riscos. Tal panorama deve nos ajudar a perceber que nossos sonhos de grandeza estão aquém da verdade, que cada um de nós tem realmente uma grande e bela pessoa dentro de si, esperando apenas ser revelada para o mundo; mas que esta bela pessoa tem, dentro de si, muitos inimigos também.

Este pequeno livro é oferecido ao leitor na esperança de ajudá-lo a libertar o belo eu que é ele mesmo; e também para ver que todo mundo tem uma bela pessoa dentro de si, esperando para ser liberta. São Jorge e o Dragão é uma fábula que cada um de nós é chamado a representar.

AMBLESIDE, março de 1905.

[p viii]

Aos Professores

Estará evidente para o estudante de Ética que este pequeno volume é baseado na moralidade intuitiva sancionada pela autoridade Bíblica. Um uso um tanto arbitrário foi feito de certos termos—‘demônio’, por exemplo—quando o uso desses parecia prestar-se à clareza ou força na apresentação do caso.

Parece aconselhável a Autora que as classes possam, na medida do possível, ler este pequeno livro, sozinhas, como preparação para uma reprodução escrita, por exemplo, ou para um ensaio, no qual os personagens de História ou Ficção são mencionados para ilustrar o texto.

Se os jovens estudantes forem deixados em paz, provavelmente convidarão discussões sobre pontos que lhes parecem difíceis; mas o parecer da autora é, que as tentativas de apontar a moral sejam evitadas.

[p ix]

CONTEÚDO

INTRODUTÓRIO

CAPÍTULO I

O Reino de Alma Humana

As riquezas de Alma Humana—Rios e cidades—Livros e áreas de lazer—Igrejas e montanhas agradáveis, … 1

CAPÍTULO II

Os Perigos de Alma Humana

O governo é culpado—Perigo da preguiça—Perigo do fogo—Perigo de peste, inundação, fome—Perigo de discórdia—Perigo das trevas, … 5

CAPÍTULO III

O Governo de Alma Humana

Cada um de nós é um Reino de Alma Humana—Oficiais de Estado—As quatro Câmaras, … 9

PARTE I

A CÂMARA DO CORPO

CAPÍTULO I

Os Escudeiros do Corpo: A Fome

O trabalho dos apetites—Como se comporta a fome—Fome, uma serva; A gula uma governante—Como a gula afeta o corpo—Como evitar a ganância, … 11

[p x]

CAPÍTULO II

Os Escudeiros do Corpo: A Sede

A sede gosta de água fria—A embriaguez anseia por álcool—Por que pessoas se abstêm, … 15

CAPÍTULO III

Os Escudeiros do Corpo: Inquietação e Repouso

A Inquietação torna o corpo forte—Mas a Inquietação pode ser um mestre severo—Repouso, um bom servo—Preguiça, uma tirana, … 18

CAPÍTULO IV

Os Escudeiros do Corpo: Castidade

Como dominar os apetites—Cada apetite tem sua hora—Impureza—Pureza—Glorifique a Deus em seus corpos—Os apetites são nossos servos, não nossos mestres, … 21

CAPÍTULO V

Os Pajens do Corpo: Os Cinco Sentidos

Paladar, agradável e útil—Mas mimado, torna-se nosso mestre, … 24

Olfato é preguiçoso—Deve dar muito prazer a Alma Humana—Deve servir no Conselho de Saúde—Prática na captura de odores, … 25

Tato, o mais difundido—Muito útil—O ‘tato’ dos cegos—Um ‘toque’ gentil—Prática do ‘toque’—O tato tenta dominar Alma Humana—É bom ter pequenas coisas para aturar, … 26

A visão proporciona uma boa parte da nossa alegria—Olhos e Sem Olhos, … 28

Audição uma fonte de alegria—Quanto mais escutamos, mais ouvimos—Alguns sons agradáveis—Música, a grande alegria que devemos a audição—Como obter o ouvido auditivo, … 29

PARTE II

A CÂMARA DA MENTE

CAPÍTULO I

Nosso Ser

‘Nosso Ser’, um vasto país ainda não explorado—Autocontrole, autoconhecimento, auto reverência, … 33

[p xi]

CAPÍTULO II

Meu Lorde Intelecto

Apresenta Alma Humana a deliciosos domínios—Ciência, uma região vasta e alegre—A imaginação aplaude o viajante aqui—História, um lugar agradável—Os espetáculos da História—Estamos fazendo História—Não podemos nos sentir em casa na História sem Imaginação—Matemática, uma terra montanhosa—A Filosofia explora Alma Humana—Literatura, um reino muito rico e glorioso—Como reconhecer a Literatura—Nosso senso de Beleza—Beleza na natureza—O Palácio da Arte—O Salão da Simulação—A vida intelectual, … 35

CAPÍTULO III

Os Demônios do Intelecto

A inércia não nos deixa começar—O hábito passa sempre pelo mesmo terreno—Não podemos permanecer em um campo de pensamento—Uma mente magnânima, … 45

CAPÍTULO IV

Meu Lorde Explorador-Chefe, Imaginação

Imagens vivas—A Imaginação cultivada—A Imaginação não deve fazer retratos da própria pessoa—Como exorcizar o demônio—Imagens vivas do pecado—Imaginações impuras—Imagens vivas de horrores, … 48

CAPÍTULO V

O Senso da Beleza

O demônio da exclusividade—Não podemos escolher nossas vidas—Um paraíso de deleite, … 54

CAPÍTULO VI

Meu Lorde Procurador Geral, Razão

Razão, um defensor—Como raciocinamos—A razão do homem bom—Parte da razão em boas obras e grandes invenções—O que se entende por Senso Comum—Tudo o que usamos foi pensado por alguém—Pessoas boas e sensatas chegam a conclusões opostas—A razão não é infalível—Anarquistas [p xii]—A razão em Matemática—A razão deve ser usada para um bom propósito—A razão elabora uma noção recebida pela Vontade mas não a inicia—Por que existem diferentes escolas de filosofia—Prática de raciocínio, … 56

CAPÍTULO VII

Os Lordes do Tesouro, Os Desejos (Parte I.)

A mente deve ser alimentada—O desejo de aprovação—O demônio da vaidade—Fama e infâmia—O desejo de excelência—Prêmios e lugares—Excelência em coisas indignas—O desejo de riqueza—O demônio do egoísmo—Riquezas sem valor—O desejo do poder—‘Gerenciando’ pessoas, … 66

CAPÍTULO VIII

Os Lordes do Tesouro, Os Desejos (Parte II.)

O desejo da sociedade—Aprendemos com a sociedade—Perigos que acompanham o amor a Sociedade—Sociedade, um banquete no qual todos servem—O desejo de conhecimento—A curiosidade e desejo de conhecimento—Emulação e amor ao conhecimento—‘Notas’ e conhecimento—Todas as pessoas têm poderes mentais—A ordem de nossos pensamentos, … 73

PARTE III

A CÂMARA DO CORAÇÃO

OS LORDES DO CORAÇÃO: I. AMOR

CAPÍTULO I

Os Caminhos do Amor

Os Lordes da câmara—Amor—Amores falsos, Amor próprio—Flertar—O amor deleita-se com a bondade do outro—Procura a felicidade de seu amigo—Procura ser digno—Deseja servir—Aversão, … 81

CAPÍTULO II

Os Representantes do Amor: A Piedade

Cavaleiros e damas da Piedade—Piedade inútil—Autopiedade—Nossas defesas, … 87

[p xiii]

CAPÍTULO III

Os Representantes do Amor: A Benevolência

‘Reformar o mundo, ou suportá-lo’—As falhas não são o todo de uma pessoa—O trabalho da boa vontade—Os inimigos da boa vontade—A paz da boa vontade, … 91

CAPÍTULO IV

Os Representantes do Amor: A Compaixão

Compaixão para com um, a chave para todos—Uma alavanca para levantar—A virtude se esvai de nós—Uma falsa compaixão—Tato—Demônios tentando representar este Lorde da Virtude, … 95

CAPÍTULO V

Os Representantes do Amor: A Bondade

A bondade torna a vida agradável para os outros—A bondade de cortesia—Simplicidade—Bondade em interpretação, … 99

CAPÍTULO VI

Os Representantes do Amor: A Generosidade

Impulsos generosos comuns a todo o mundo—Grande confiança—A generosidade é cara, mas também recompensadora—Noções falaciosas que restringem a generosidade, … 103

CAPÍTULO VII

Os Representantes do Amor: A Gratidão

A alegria de um coração agradecido—Um coração agradecido recebe em dobro—A reprovação da ingratidão, … 108

CAPÍTULO VIII

Os Representantes do Amor: A Coragem

Todos temos coragem—A coragem do ataque—Da resistência—Da serenidade—De nossos assuntos—Das nossas opiniões—Da franqueza—Da repreensão—Da confissão—Da nossa capacidade—Da oportunidade, … 112

[p xiv]

CAPÍTULO IX

Os Representantes do Amor: A Lealdade

Lealdade da juventude—Nossas lealdades preparadas para nós—Lealdade ao nosso rei—Lealdade devida aos nossos—Opinião pública responsável pela anarquia—Lealdade ao país—O serviço da lealdade—Lealdade a um chefe—Lealdade aos laços pessoais—Uma mente constante—Perfeição—Lealdade aos nossos princípios—Os temperamentos que repugnam a lealdade, … 118

CAPÍTULO X

Os Representantes do Amor: A Humildade

O orgulho da vida—A humildade nasce em todos nós—A caricatura da humildade—Humildade sinônimo de simplicidade—O caminho da humildade, … 126

CAPÍTULO XI

Os Representantes do Amor: A Alegria

Alegria suficiente para todos no mundo—A alegria brota na tristeza e na dor—A alegria é cativante—A alegria é perdurável—Ficamos tristes quando sentimos pena de nós mesmos—Alegria, um dever, … 131

OS LORDES DO CORAÇÃO: II. JUSTIÇA

CAPÍTULO XII

Justiça, Universal

Devemos conhecer as funções do amor e da justiça—Todos tem justiça em seu coração—Não devo ferir ninguém por palavra ou ação—Devo ser justo com todas as outras pessoas—Somos capazes de pagar as taxas da justiça—Nossos próprios direitos, … 136

CAPÍTULO XIII

Justiça para com as Pessoas dos Outros

Começamos a entender esse dever—Pensar de maneira justa requer conhecimento e consideração—Pessoas feridas na mente, sofrem [p xv] no corpo: Brandura—Uma palavra pode machucar tanto quanto um golpe, Cortesia—Não somos livres para pensar mal sobre os outros—Justiça ao caráter dos outros—Sinceridade—Preconceito—Respeito—Vaidade—Discernimento—Apreciação—Depreciação, … 140

CAPÍTULO XIV

Verdade: A Palavra Justa

A verdade não é violenta—‘Calúnia,’ de Botticelli—Calúnia—Insídia e inveja—Calúnias que lemos e ouvimos—Fanatismo—O ‘soberano bem,’ … 150

CAPÍTULO XV

Verdade Falada

Veracidade—Escrupulosidade não é veracidade—Exagero—O hábito de generalizar—Sobre criar uma boa história—O reino da ficção: Verdade essencial e acidental—O valor da ficção depende do valor do escritor—A ficção afeta nosso entusiasmo—Verdade essencial, … 156

CAPÍTULO XVI

Algumas Causas da Mentira

Mentiras maliciosas—Mentiras covardes—A falsidade da reserva—Vangloriando-se de mentiras—Fantasias mentirosas—Mentiras em nome da amizade—Magna est veritas, … 163

CAPÍTULO XVII

Integridade: A Ação Justa

Integridade no trabalho: ‘Ca’ canny’—Um padrão—Somos todos trabalhadores remunerados—A integridade cresce—‘Faça você a próxima coisa’—Faça a coisa principal—O hábito de terminar—A integridade no uso do tempo: Vagabundos e preguiçosos—A posse do tempo—Integridade no material: Honestidade—Dívidas pequenas—Pechinchas—Propriedade do vizinho—A propriedade emprestada, … 167

[p xvi]

CAPÍTULO XVIII

Opiniões: O Pensamento Justo

Três ‘opiniões’—Uma opinião que vale a pena ter—Opiniões sujeitas a julgamento—‘Modismos’—Assuntos sobre os quais devemos formar opiniões—Opiniões sobre livros—Nosso dever em relação à opinião, … 179

CAPÍTULO XIX

Princípios: Motivos Justos

Princípios, ruins e bons—Como distinguir—Nossos princípios ‘em letras maiúsculas,’ … 187

 CAPÍTULO XX

Justiça a Nós Mesmos: A Auto-ordenação

Meu dever para comigo mesmo—A temperança evita todo excesso—A sobriedade não busca excitação—A auto-indulgência leva ao vício—A separação dos caminhos—O destino do bêbado—‘En parole’—Excitação—Os caminhos do glutão: Circe—Interesses na vida—Preguiça—Imundícia, … 191

PARTE IV

VOCAÇÃO

Planos—Preparação—Possibilidades—O hábito de ser útil—Os ‘Descuidados’—Servo ou mestre—A lei do hábito—Nosso chamado, … 204

[p 1]

Nossos Corpos, Nossas Almas

Livro I.—Autoconhecimento

“Um profundo respeito por si próprio, o conhecimento de si mesmo e o autocontrole: eis as três coisas que, sozinhas, concedem poder soberano sobre a vida.”

Tennyson.


INTRODUTÓRIO

CAPÍTULO I

O PAÍS DE ALMA HUMANA

As Riquezas de Alma Humana.—“Você não gosta de terras belas?” diz o rei Alfred; e responde para si mesmo: “Por que não gostaria de belas terras? Elas são a parte mais bela da criação de Deus.” E de todas as terras belas que Deus fez, não há país mais belo que o Reino de Alma Humana.

O solo é, em quase toda parte, muito fértil, e onde é cultivado há prados, campos de milho e pomares com todos os tipos de frutas. Também existem áreas selvagens, riachos com ondas, cercados por não-me-esqueças e calêndulas, lugares onde os pássaros fazem ninhos e cantam. Há copas de avelã onde se pode colher nozes, e florestas com árvores enormes. Também há selvas, pantanosas e desagradáveis, [p 2] mas elas só estão à espera de que mãos boas e diligentes as recuperem e tornem-nas tão férteis quanto o resto do país. Nas profundezas da superfície, existem leitos de combustível a serem utilizados para o trabalho, de modo que naquela terra nunca nunca se acham lareiras sem chamas. Há também muitas outras minas, onde trabalhadores dedicados encontram, além de metais úteis e necessários como cobre e ferro, prata e ouro e pedras muito preciosas. Quando os trabalhadores estão cansados, podem descansar, pois há árvores que oferecem sombra e abrigo, e agradáveis ​​campos onde podem divertir-se. E pode-se ouvir o riso das crianças, e vê-las se divertindo.

Os Rios e as Cidades.—Há rios, largos e profundos, bons para se banhar e nadar, e igualmente bons para carregar os navios que transportam as coisas produzidas em Alma Humana para outros países, distantes e próximos. Também nesses rios navegam os navios vindos de muitas terras, trazendo passageiros e mercadorias. Há cidades movimentadas em Alma Humana; e elas são também lugares agradáveis; porque, embora haja fábricas onde os homens trabalhem e construam todo o tipo de coisas para uso doméstico ou para serem enviadas ao exterior, há também prédios bonitos, palácios encantadores, onde estão reunidos os tesouros de Alma Humana,—galerias de obras de arte preciosas e belas pintadas pelos grandes artistas de todos os países, estátuas dos heróis lá reverenciados, salões com órgãos de tom nobre que podem rugir como o trovão e balbuciar como uma criança, e todo tipo de instrumentos musicais. A esses salões, grandes músicos vêm e tocam coisas maravilhosas que fizeram; o povo de Alma Humana as escuta, e pensamentos maravilhosos tomam conta de suas mentes, e todo mundo se sente como se pudesse levantar-se e de repente tornar-se um herói.

[p 3]

Seus Livros e Áreas de Lazer.—Há também bibliotecas—e que bibliotecas! que contêm todo livro encantador que já foi escrito. Quando alguém se senta para ler, o autor que criou o livro chega e se inclina sobre o ombro dele e fala com ele. Esqueci-me de dizer que nas galerias de pinturas os pintores antigos fazem a mesma coisa; eles vêm e contam o que quiseram expressar com a obra.

Não há cidade em Alma Humana cuja área esteja inteiramente construída, mas há muito espaço para parques e campos de críquete, campos de jogos e lugares onde as pessoas se encontram e se divertem, dançam e cantam. Ninguém precisa ser pobre em Alma Humana; e se alguém é pobre, negligenciado e subdesenvolvido, é por uma razão que examinaremos ao longo dessa história.

Suas Igrejas e suas Montanhas Agradáveis.—Os melhores tesouros do país são mantidos nos mais belos edifícios, nas igrejas sempre abertas, para que as pessoas entrem e saiam muitas vezes ao dia para conversar com Deus, e Ele vem e fala com eles. Mas, de fato, Ele anda por toda parte na terra, nas oficinas, nas galerias de obras de arte e nos campos; as pessoas O consultam sobre tudo, sobre pequenas e grandes coisas, e Ele lhes aconselha sobre tudo.

Ainda resta muito a dizer sobre Alma Humana, mas acho que deixei de lado o principal—as ‘Montanhas agradáveis’, onde as pessoas vão para respirar o ar puro, colher as lindas flores e fortalecer os membros e os pulmões na árdua alegria da escalada. Do alto, eles têm uma visão que os deixa solenemente felizes; eles veem boa parte de Alma Humana e as fronteiras da terra que está muito distante. Eles vêem boa parte de [p 4] Alma Humana, mas não conseguem ver tudo, pois, e isto é algo muito curioso, nenhum mapa foi feito sobre esse país, porque grande parte dele permanece inexplorada e os homens não descobriram seus limites. Isso é emocionante e encantador para o povo, porque, embora Alma Humana aqui e ali seja tocado por outro país como ele, há, por toda parte, áreas que homem nenhum chegou a descobrir, regiões do país que podem ser ricas e bonitas.

[p 5]

CAPÍTULO II

OS PERIGOS DE ALMA HUMANA

O governo é o Culpado.—Você está pensando, eu diria, que país rico e belo Alma Humana deve ser! Mas, como a maioria das outras terras, está sujeita a muitos perigos. Ao contrário da maioria das outras terras, porém, Alma Humana tem meios de escapar dos perigos que a ameaçam de tempos em tempos. Em outros países, ouvimos que o governo é o culpado se as pessoas pobres não têm pão e se as pessoas ricas ficam irritadas com o barulho de um galo. Isso geralmente é um grande absurdo, mas não é um absurdo culpar o governo de Alma Humana pelos males que ocorrem naquele país, pois o governo tem um grande poder para impedir esses males. Como o país é governado, você ouvirá mais tarde. Por enquanto, aprenda algo sobre os perigos que podem tomar conta da pobre Alma Humana e de tudo o que nela há.

Perigo da Preguiça.—Talvez o mal mais comum seja uma espécie de epidemia de preguiça que se espalha por todo o país. Os catadores sentam-se com olhos pesados ​​e braços cruzados, deixando resíduos e sujeira acumularem-se nas ruas. Os agricultores e seus trabalhadores dizem: ‘Para quê?’ e deixam de sair com o arado ou semear a semente. As frutas caem das árvores e apodrecem porque ninguém trata de buscá-las. [p 6] Os navios estão ociosos nos portos porque ninguém quer nada do exterior. Os bibliotecários deixam seus livros serem enterrados sob o pó e devorados por insetos, e negligenciam o dever de reunir mais livros. As obras de arte ficam escuras e esfarrapadas por falta de cuidados; e ninguém em todo o país acha que vale a pena fazer qualquer coisa.

Às vezes as pessoas ainda gostam de brincar; mas só brincar, sem trabalhar, torna-se algo monótono depois de um tempo, e logo param. E assim as pessoas, sejam quais forem os seus negócios em Alma Humana, sentam-se ou relaxam sem brilho nos olhos, de braços cruzados e cabeças pendentes.

Perigo do Fogo.—Outro risco que Alma Humana corre é o de grandes conflagrações. Às vezes, um incendiário de algum país estrangeiro desembarca em um de seus portos, pelos vistos com o objetivo expresso de atear fogo ao que há de melhor em Alma Humana; mas talvez ateie fogo nas coisas por acidente, por não saber quão inflamáveis elas são. Uma vez que o fogo tenha começado, o vento carrega as chamas por muitos quilômetros; edifícios nobres, preciosas obras de arte, fazendas com pilhas de milho, tudo é consumido e a ruína segue a trilha do fogo. Às vezes, esses incêndios surgem na própria Alma Humana. Eu já lhe disse que o país tem grandes camas de combustível subjacente. Aqui e ali, gases inflamáveis ​​irrompem na superfície, e uma faísca lançada na região desses gases é suficiente para causar uma ampla conflagração. Mas Alma Humana deve ser tão cuidadosa quanto as pessoas na Suíça quando sopra um vento quente chamado Föhn, e são emitidas ordens para que todos apaguem seus fogos e luzes.

Perigos de Peste, Inundação e Fome.—Algumas vezes a peste faz uma visita, porque [p 7] casas, ruas e banheiros não são mantidos limpos e higiênicos, e os esgotos podem entrar em desordem.

Às vezes as nascentes se enchem nas colinas, os rios transbordam e há uma inundação; mas isso nem sempre é uma desgraça no final, porque muito do que é podre e impuro é varrido, e as terras banhadas por uma enchente tornam-se muito férteis depois.

Novamente, pode acontecer que as colheitas desapontem a todos, embora a terra tenha sido diligentemente cultivada e boas sementes semeadas. Mas os Estados vizinhos são gentis e ajudam Alma Humana nestes tempos angustiantes; e as colheitas do ano seguinte geralmente são abundantes.

Perigo de Discórdia.—Outra causa ocasional de angústia em Alma Humana é que um espírito de discórdia irrompe de vez em quando entre os membros da comunidade e se torna às vezes tão violento que leva a uma guerra civil devastadora. Os servos e operários não obedecem aos senhores, e os senhores não consideram seus servos e entram em conflito entre si; um membro do ministério escolhe participar do trabalho de outro membro; todos os empregos úteis são negligenciados e as pessoas são tomadas pela inveja e pelo descontentamento.

Posso falar de outras causas de angústia em Alma Humana, mas mencionarei apenas mais uma, que é de longe a pior de todas as que podem tomar conta do Estado.

Perigo das Trevas.—Adorável e sorridente como o país é quando está bem ordenado, às vezes nascem dele brumas frias, densas e negras; nem um raio de sol consegue penetrar nessas brumas, nenhuma luz, nem calor; ninguém consegue ver seu caminho, de modo que as pessoas dizem: ‘Não há sol,’ e alguns dos mais tolos acrescentam: ‘Nunca houve um sol [p 8] no céu, e nunca haverá.’ Quando eles não conseguem ver o sol, é claro que não podem se ver, e tropeçam uns nos outros na escuridão. Você dirá que muitas terras, especialmente terras baixas, estão sujeitas a névoas ofuscantes, mas em nenhum lugar elas são tão espessas e pesadas, e em nenhum lugar ficam por tanto tempo, como no Reino de Alma Humana. Uma coisa bastante excepcional sobre essas brumas é que elas também estão amplamente sob controle do governo, especialmente do Primeiro-Ministro. Como isso pode ser assim, não posso explicar completamente aqui, mas você entenderá mais tarde.

Embora todas essas coisas possam acontecer em Alma Humana, não devemos assumir que seja um país infeliz. Pelo contrário, é radiante e amável, ativo e alegre, cheio de coisas interessantes e de uma vida alegre,—desde que o governo cumpra seus deveres.

[p 9]

CAPÍTULO III

O GOVERNO DE ALMA HUMANA

Cada um de nós é um Reino de Alma Humana.—Devo desistir de tentar falar sobre Alma Humana em parábolas. Ouso dizer que você já achou difícil entender tudo; mas não importa; o que você não entende agora, pode vir a entender um dia, ou pode ver um significado melhor e mais verdadeiro do que o tive a intenção de comunicar. Todo ser humano, criança ou homem, é um Reino de Alma Humana; e nascer um ser humano é como entrar em uma grande propriedade; a bondade, a grandeza, o heroísmo, a sabedoria e o conhecimento são possíveis para todos nós. Por esse motivo eu disse que ninguém descobriu os limites do Reino de Alma Humana; pois ninguém sabe o quanto cada pessoa pode fazer. Muitas passam a vida sem reconhecer isso. Eles não têm noção do quanto podem fazer e sentir, saber e ser; e assim suas vidas tornam-se pobres, limitadas e decepcionantes.

É verdade que Alma Humana é como um país grande e rico, com um governo mais ou menos poderoso e harmonioso; porque há uma parte de nós mesmos cuja ocupação é administrar e tirar o melhor proveito do restante de nós mesmos, e a essa parte de nós mesmos chamaremos o Governo.

[p 10]

Oficiais de Estado.—Há muitos Oficiais de Estado, cada um com seu trabalho distinto a ser feito na economia deste Reino de Alma Humana; e, se cada um faz seu próprio trabalho, e se todos trabalham juntos, Alma Humana é feliz e próspera. Darei uma lista de alguns dos grandes Oficiais de Estado e, mais tarde, consideraremos o que cada um deve fazer. Para começar com os mais baixos, existem os Escudeiros do Corpo, comumente chamados de Apetites; depois vêm os Senhores da Receita Pública, conhecidos como os Desejos; os Senhores do Tesouro, isto é, os Afetos; depois o Secretário de Relações Exteriores, ou seja, o Intelecto, com seus colegas, o Senhor Chefe Explorador (Imaginação) e o Senhor Presidente das Artes (o Senso Estético); o Senhor Procurador-Geral, isto é, a Razão; os Senhores da Câmara do Coração: o Senhor Chefe de Justiça, isto é, a Consciência; o Primeiro Ministro, isto é, a Vontade. Existem vários outros Oficiais de Estado, a quem não podemos citar agora, mas esses são os principais. Além e acima de tudo isso, está o Rei; pois você se lembra de que Alma Humana é um Reino.

As Quatro Câmaras.—Imaginemos esses vários ministros sentados cada um em sua câmara com a ordem de assuntos por que ele é responsável. Essas Câmaras são: a Câmara do Corpo, a Câmara da Mente, a Câmara do Coração e a Câmara da Alma.

Você não deve compreender as câmaras como se fossem partes diferentes de uma pessoa; mas como poderes diferentes que toda pessoa tem e que toda pessoa deve exercer, a fim de aproveitar ao máximo a grande herança que herdou ao nascer como ser humano.

[p 11]

PARTE I

A CÂMARA DO CORPO

CAPÍTULO I

OS ESCUDEIROS DO CORPO: A FOME

O Trabalho dos Apetites.—Consideraremos primeiro os Escudeiros do Corpo; não que eles sejam os Chefes de Estado, mas em Alma Humana, como no mundo, muito depende das pessoas menos importantes; e os Escudeiros do Corpo têm muito poder para fazer tudo dar certo ou tudo dar errado em Alma Humana.

O trabalho deles é muito necessário para o bem-estar do Estado. Eles fortalecem o Corpo, e cuidam para que haja novas Alma Humanas para substituir as antigas, quando estas se forem. Se cada um cuidasse de seus próprios afazeres e nada mais, tudo iria bem; mas há muita rivalidade no governo, e cada um dos membros tenta fazer o primeiro ministro acreditar que a felicidade de Alma Humana depende dele. Se qualquer um desses membros do governo conseguir pôr as mãos em tudo, tudo ficará uma desordem.

Como a Fome se Comporta.O Escudeiro Fome é o primeiro dos apetites que notamos. Ele é [p 12] um sujeito muito útil. Se ele não aparece na hora do café da manhã, fazemos uma refeição ruim e nem o trabalho nem a diversão vão bem em Alma Humana naquele dia. Se, durante semanas, a Fome não se sentar à mesa, dedos magros e bochechas fundas mostrarão que esse bom servo abandonou seu cargo. Ele é facilmente desprezado. Se as pessoas dizem: ‘Eu odeio’ pão e leite, ou ovos, ou carne de carneiro, ou qualquer outra coisa, e pensam nisso muitas vezes, a fome fica enojada e vai embora. Mas se eles se sentam para as refeições sem pensar no que estão a comer, e pensam em algo mais interessante, a Fome os ajuda, pouco a pouco, até que seus pratos se esvaziem, e nova matéria é obtida para fortalecer seus corpos. A fome não gosta de guloseimas. Ela gosta de coisas simples e agradáveis; e quando uma pessoa começa a se alimentar de guloseimas, como pastelarias, bolos, muitos doces, a fome se vai; ou melhor, ela muda de caráter e se torna Gula.

Fome, uma Serva, Gula, uma Governante.—É como Gula que ela tenta obter a atenção do primeiro-ministro, dizendo: ‘Deixe tudo comigo, e farei Alma Humana feliz. Alma Humana não desejará nada além do que eu posso lhe dar.’ Então começa um tempo tranquilo. Enquanto Fome era sua serva, Alma Humana não pensava em nada sobre suas refeições até que chegasse a hora delas, e então ela as comia com bom apetite. Mas a Gula se comporta de maneira diferente. A Gula leva a vítima às janelas do confeiteiro e a faz pensar em qual o sabor disso ou daquilo: todo o seu dinheiro é gasto em tortas, doces e caramelo. No café da manhã ela pensa em qual pudim gostaria de comer no jantar, e sempre o pede como favor. Na verdade, ela está sempre implorando por pedaços de bolo, colheres de geléia [p 13] e chocolates extras. Ela não pensa muito em suas lições, porque tem um centavo no bolso e está pensando em qual é a coisa mais legal que pode comprar com ele; ou, se ela é mais velha, talvez ela tenha uma libra, mas seu pensamento ainda é o mesmo, e a Gula consegue tudo. A pessoa gulosa se afasta de refeições saudáveis ​​e não se importa com o trabalho ou a diversão, porque a Gula tem a atenção do Primeiro-Ministro e quase todos os pensamentos de Alma Humana concentram-se em:—‘O que devo comer?’ ele diz. A Gula começa quando o garoto é pequenino, e o acompanha por toda a vida, só que, em vez de gostar de cremes de chocolate, quando homem ele gosta de ótimos jantares com duas horas de duração.

Como a Gula Afeta o Corpo.—Mas, você dirá, se a Fome fortalece o corpo, certamente a Gula deve fazê-lo muito mais rapidamente. É verdade que, às vezes, a pessoa gulosa engorda, mas é o músculo e não a gordura que torna o corpo forte e útil. A Gula não produz músculos e causa doenças horríveis.

Como Evitar a Ganância.—A maneira de manter esse inimigo fora de Alma Humana é seguir as regras que a Fome estabelece. A principal delas é—nunca pense em suas refeições até que elas cheguem e, enquanto você estiver comendo, converse e pense em algo mais divertido do que sua comida. Quanto às coisas boas, é claro que todos queremos coisas boas de vez em quando; mas comamos o que nos é dado do chocolate ou da fruta à mesa e não pensemos mais nisso. Sabemos que doces ou frutas raramente são servidos na escola, e quando na escola, é bastante justo um garoto se permitir gastar uma certa parte de seu dinheiro dessa maneira, não apenas para si mesmo, mas para que ele possa ter algo para dar. Mas o garoto que gasta a maior parte [p 14] do dinheiro que recebe semanalmente com coisas para comer, ou que sempre implora pelos cestos onde ficam guardadas as guloseimas em casa, é um sujeito pobre, vítima da Gula. O melhor plano é querer gastar seu dinheiro com outra coisa—algum tipo de coleção, talvez; ou economizar para comprar um presente, uma vara de pescar ou qualquer coisa que valha a pena ter. A Gula deixa você em paz quando você deixa de pensar nela e em suas coisas boas.

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CAPÍTULO II

OS ESCUDEIROS DO CORPO: A SEDE

A Sede gosta de Água Fria.—Outro Escudeiro muito útil do corpo é a Sede. Você entenderá o quão útil ela é quando lembrar que, de longe, a maior parte do peso de um homem é composto de água. Essa água está sempre sendo desperdiçada de uma maneira ou de outra, e o papel da Sede é compensar a perda. A Sede é um sujeito simples; a bebida de que ela mais gosta é água fria pura; e, de fato, ela está certa ao preferi-la, pois, se pararmos para pensar, há apenas uma coisa para beber no mundo, embora a bebamos misturada com muitas outras coisas. Às vezes a mistura é feita pela natureza, como no leite ou nas uvas; às vezes pelo homem, como no chá ou no café. Algumas dessas bebidas mistas são saudáveis, porque, além da bebida, contêm alimentos, e de longe a mais saudável é o leite.

Mas a Sede não precisa de nada na água que bebe, e não se importa com misturas. Ela gosta mais da água limpa e fria; se morássemos em países quentes do Leste, saberíamos o quão deliciosa é a água fria. Todas as crianças pequenas gostam de água, mas meninos e meninas maiores às vezes gostam de variações, como suco de limão na água para dar um sabor. Embora não haja [p 16] mal nisso, é uma pena, porque eles perdem o gosto pela própria água.

A Embriaguez anseia por Álcool.—Você deve estar pensando que um Escudeiro do Corpo tão simples e útil nunca poderia ser uma fonte de perigo para Alma Humana. Mas Sede também quer o ouvido do Primeiro-Ministro, quer sua atenção; ela também diz: ‘Deixe Alma Humana comigo, e ela nunca mais quererá nada no mundo além do que eu posso dar-lhe.’ Essa afirmação da Sede é bastante verdadeira, porém, em vez de chamá-la de Sede agora, devemos chamá-la de Embriaguez; e uma vez que a Embriaguez tem um homem em suas mãos, não quer nada além de beber, beber, de manhã até à noite.

As cadeiras e as mesas da casa dele, o pão dos filhos e as roupas da mãe, tudo se vai para que ele compre bebida. O tempo, a saúde e a força do homem são gastos na bebida: ele se torna sem-teto e sem amigos, doente e isolado por causa da bebida. Mas ele não anseia por sua casa ou seus amigos; tudo o que ele quer é mais e mais bebida. De longe, a maior parte do pecado, miséria e pobreza no mundo é causada pela Embriaguez.

Por que as Pessoas se Abstêm.—Como você sabe muito bem, não é a água pura que causa a Embriaguez. Há muito tempo, os homens descobriram como preparar uma substância chamada álcool, e é isso que arruina tantos homens e mulheres. Muitos homens e mulheres de bem, e crianças também fazem um voto solene de que nunca provarão cerveja, vinho ou outra bebida forte, a menos que um médico o peça como remédio. Eles fazem isso, não só por medo de se tornarem bêbados—embora, de fato, nunca se saiba quem possa cair nessa terrível tentação, ou em que período da vida essa queda pode acontecer,—mas porque cada pequena [p 17] boa ação ajuda a parar o mal no mundo, ao dar um bom exemplo a alguém; e talvez nunca haja o bom exemplo dado propositalmente, mas alguém o segue, embora a pessoa que deu o exemplo possa nunca saber.

Essa é uma das razões pelas quais é bom manter o gosto pela água fria e saber e lembrar-se de como ela é deliciosa.

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CAPÍTULO III

OS ESCUDEIROS DO CORPO: INQUIETAÇÃO E REPOUSO

A Inquietação torna o Corpo Forte.—Eu mal sei como chamar os dois Escudeiros do Corpo que apresentarei agora a vocês, mas ambos são bons servos. Talvez Inquietação e Repouso sejam os melhores títulos. Você já deve ter notado que um bebê raramente fica quieto quando está acordado: ou chuta as pernas, ou brinca com os dedos das mãos e dos pés, ou rasteja, ou agarra e joga alguma coisa, ou pega outra, ri e canta, e chora. Meninos e meninas pequenas também não suportam ficar sentados por muito tempo durante as aulas. Eles querem correr para o jardim e ver o que seus bichinhos de estimação estão fazendo. Quando as lições terminam, uma boa brincadeira, ou uma corrida, ou uma boa dose de cambalhotas, é maravilhosa. Mais tarde, as pessoas querem jogar críquete ou futebol, andar de bicicleta ou escalar montanhas. Eles acham que fazem todas essas coisas só porque é divertido; mas, na verdade, o bom Escudeiro da Inquietação não os deixa sozinhos, mas lhes dá uma sensação desconfortável se eles não estão fazendo algo que seja bastante difícil e um tanto cansativo. Ele cumpre, assim, o papel de um fiel servidor. Ele está ajudando a transformar Alma Humana em um corpo forte e resistente, capaz de nadar e [p 19] cavalgar, pular e correr; capaz de caminhar para longe e acertar no alvo e fazer todos os serviços que o Primeiro-Ministro lhe exigir. De fato, a missão da Inquietação é fortalecer e endurecer os músculos que a fome alimenta.

Mas a Inquietação pode ser um Mestre Severo.—Inquietação, por ser um bom servo, pode se tornar um severo mestre; de fato, às vezes isso acontece, e as pessoas fazem coisas que são muito difíceis para elas, remando ou subindo correndo, ou pulando. Pior ainda, o Diabo da Inquietação as possui, e eles não se contentam com nenhum tipo de trabalho ou brincadeira, porque sempre querem estar fazendo outra coisa. Este é um estado muito lamentável de se encontrar, porque só aprendemos a fazer bem alguma coisa se a fazemos de forma constante, seja críquete ou álgebra; por isso, é bom estar atento ao momento em que Inquietação, o bom servo, transforma-se em Inquietação, o Diabo inquieto que nos dirige de um lugar a outro, e não nos dá um firme ponto de apoio em nenhuma parte da vida.

Repouso, um Bom Servo.—Naturalmente, seu companheiro e irmão, Repouso, aparece dizendo: ‘Agora é minha vez,’ e a pessoa cansada fica feliz em se sentar e ficar quieta por alguns momentos, ou deitar-se com um livro ou, melhor ainda, dormir profundamente à noite e acordar revigorada e pronta para qualquer coisa. Assim, os músculos variam entre trabalho e descanso para ajudá-los a crescer e se tornarem fortes.

Preguiça, uma Tirana.—Eu imagino que você esteja feliz em ouvir falar de um Escudeiro do Corpo que não seja seguido por uma sombra negra que ameace Alma Humana com a ruína; mas, ai de mim! Nós não podemos nos descuidar. O Repouso também tem seu Diabo, cujo nome é Preguiça. ‘Dormir um pouco, cochilar [p 20] outro tanto, deitar-se com os braços cruzados mais um tanto,’ é o pedido com o qual ele assedia o Primeiro-Ministro. Uma vez que Preguiça torna-se governante de Alma Humana, a pessoa não consegue acordar de manhã, enrola para se vestir, desce tarde para o café da manhã, odeia passeios, não suporta jogos, demora a se arrumar, não quer construir barcos ou apitos, ou colecionar selos, perde a atenção em todas as suas lições, está na terceira série quando deveria estar na sexta, anda pelos cantos do campo de jogo com as mãos nos bolsos, nunca faz nada por ninguém, não porque seja indelicada ou mal-humorada, mas porque ela não se dá ao trabalho.

Pobre camarada! Ela não sabe que está caindo diariamente mais e mais sob o poder de um severo mestre. Quanto menos ela se esforça, menos é capaz de se esforçar, porque os músculos, que Inquietação mantém firme e em boa forma, são relaxados pela Preguiça e enfraquecidos até que se torne um trabalho levantar a mão à cabeça ou arrastar um pé após o outro. As pessoas costumavam ter muito medo de Preguiça e chamá-la de um dos Sete Pecados Mortais, mas de alguma forma as pessoas pensam menos nela hoje em dia; talvez porque achamos tantas coisas para fazer que não conseguimos suportar a Preguiça. Mesmo assim, se seus amigos o chamarem de ocioso por não querer brincar ou trabalhar, ou pior, indolente ou, pior ainda, preguiçoso, recomponha-se no mesmo instante, porque com certeza o Diabo, a Preguiça, está sobre você, e assim que estiver sob suas garras você se encontrará em uma situação muito má, e sua vida estará correndo um grande risco de ser arruinada, como se a Gula ou a Embriaguez tivessem se apoderado de você. Mas tome coragem, a fuga é fácil: Inquietação está em alerta para salvá-lo da Preguiça no começo. Levante-se e faça algo, seja no trabalho ou no tempo livre.

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CAPÍTULO IV

OS ESCUDEIROS DO CORPO: A CASTIDADE

Como Dominar os Apetites.—Vimos como cada um dos apetites—Fome, Sede, Inquietação, Descanso—é um bom servo do corpo e como o trabalho de cada um é edificá-lo e renová-lo. Vimos também como uma vida pode ser arruinada por cada um desses apetites tão inocentes, se lhes for dado o controle. Para nos salvar deste destino, precisamos comer, beber, dormir regularmente e depois não nos permitir sequer pensar em relaxar, em coisas deliciosas para comer, em coisas agradáveis ​​para beber, nos intervalos. Devemos sempre ter algo em que valha a pena pensar, para não deixar que nossas mentes pensem em assuntos indignos.

Cada Apetite tem sua Hora.—Existe outro Apetite que está sujeito às mesmas regras daqueles que nós analisamos. Ele tem sua hora, assim como comer e dormir, mas ela não chega até que as pessoas se casem. Assim como comer, beber e dormir foram criados para ajudar a tornar nossos corpos fortes, saudáveis ​​e bonitos, esse outro Apetite visa garantir que as pessoas tenham filhos, para que sempre haja pessoas no mundo, jovens, crescendo à medida que os idosos morrem. Este Apetite está conectado com uma certa [p 22] parte do corpo; e não devo falar sobre isso agora; direi apenas que um dos mais importantes deveres que temos no mundo é manter essa parte do corpo pura. É como aquela árvore do Conhecimento do Bem e do Mal plantada no Jardim do Éden.

Impureza.—Você se lembra que Adão e Eva não deveriam comer do fruto daquela árvore, ou certamente morreriam; e então, você se lembra de como o tentador foi até Eva e disse-lhe que eles não morreriam se o comessem, mas seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal. Bem, receio que, da mesma forma, você encontre tentadores que farão o possível para fazer você saber sobre coisas que você não deve saber, para conversar e ler sobre, e fazer coisas sobre as quais você não deve falar, ou ler sobre, ou fazer. Ouso dizer que eles lhe dirão que essas coisas estão certas, que você não teria essas partes do seu corpo e sentimentos sobre elas, a menos que você tivesse que pensar e fazer essas coisas. Agora, saber que esse é o pecado da Impureza ajudará você, pois ele é o mais mortal e repugnante de todos os pecados, o pecado que todos os bons homens e mulheres ​​odeiam e de que se protegem mais do que contra qualquer outro.

Pureza.—A virtude oposta se chama Pureza, e Cristo disse: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.” Penso que isso não significa que ‘verão Deus’ quando morrerem, mas ‘O verão’ com os olhos de suas almas, sobre eles e ao lado deles, e saberão, sempre que a tentação vier através deste Apetite—‘Deus, o Senhor me vê’. Esse pensamento virá a eles, para que não se tornem impuros nem em um pensamento nem em uma palavra. Eles desviarão os olhos de contemplarem o mal; eles não se permitirão ler, ouvir ou dizer uma palavra que cause pensamentos impuros.

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Glorifique a Deus com seus Corpos.—Assim eles glorificarão a Deus com seus corpos. Todo garoto ou garota que percebe isso é um herói aos olhos de Deus, está travando uma boa luta e está tornando o mundo melhor. Quando os puros se casarem, seus filhos serão abençoados, pois serão bons, saudáveis ​​e felizes, porque têm pais puros. Lembre-se de que Deus coloca diante de cada um de nós neste assunto a escolha entre o bem e o mal, entre a obediência e a desobediência, a mesma escolha que ele colocou diante de Adão e Eva. Eles pecaram e a morte entrou no mundo. E, com toda a certeza, ao se permitir cometer esse pecado de Impureza, mesmo ao pensar em algo que você não poderia dizer diretamente a sua mãe, a morte começa em você, a morte do corpo e da alma. Combata o bom combate e não se deixe, como nossos primeiros pais, ser vítima de curiosidade profana.

Os Apetites são nossos Servos, não nossos Mestres.—Que cada um dos Apetites, tão necessários ao nosso corpo, seja nosso servo e não nosso mestre, e lembre-se, acima de tudo, de que o pecado e a escravidão a qualquer Apetite começam em nossos pensamentos. É nosso pensamento que devemos governar, e a maneira de governá-lo é muito simples. Só temos que pensar em outra coisa quando um pensamento maligno surgir, algo realmente interessante e agradável, com uma oração em nossos corações a Deus para nos ajudar a fazê-lo.

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CAPÍTULO V

OS PAJENS DO CORPO: OS CINCO SENTIDOS

Os Escudeiros do Corpo, por sua vez, têm seus atendentes, seus pajens, assim chamados; pessoas muito úteis em suas habilidades, mas, como os Escudeiros, eles precisam de cuidado—em primeiro lugar, para ver se eles fazem trabalho deles, depois, para garantir que eles não se tornem tiranos. Pois mesmo eles, sendo servos dos servos que são, almejam, se deixarmos, governar Alma Humana. As pessoas às vezes chamam esses pajens de sentimentos, mas nós os chamaremos de sensações, porque é através dos cinco sentidos que eles fazem seu trabalho.

Paladar, Agradável e Útil.—Uma delas, a sensação do Gosto, geralmente não é apenas agradável, mas também muito útil. Quando a comida tem um sabor desagradável, isso costuma ser um sinal de que não é saudável. O paladar é um excelente servo, e as pessoas que sabem como mantê-lo sob controle acham deliciosas as comidas simples, como leite, pão e manteiga.

Mas, Mimado, se Torna Nosso Mestre.—As pessoas, contudo, que mimam o Paladar se tornam seus servos. Elas dizem que não gostam de mingau; elas não gostam de carne de carneiro, batatas, ovos. Elas querem coisas com sabores acentuados para agradar ao Paladar delas; quanto mais velhas elas crescem, [p 25] mais difícil será satisfazê-las, de modo que finalmente será necessário um cozinheiro francês para pensar em coisas bastante agradáveis para os jantares delas. A melhor regra é não se permitir nenhuma elegância em relação à comida, mas comer o que está posto diante de si; de fato, uma pessoa sábia fica bastante satisfeita quando algo é servido do qual não gosta exatamente, ou quando precisa tomar remédios desagradáveis, porque isso lhe dá a oportunidade de manter o Paladar em seu devido lugar, o de um servo e não de um mestre. É um bom plano não falar sobre nossos gostos ou aversões, nem mesmo saber que tipo de geléia nós preferimos.

‘Olfato’ é preguiçoso.—O Olfato é outro desses pajens, realmente um sujeito muito bom, e não sei se ele tenta muito dominar Alma Humana, a menos que seja um aliado do Paladar. Ele é muito censurável quando ele cheira pratos saborosos e faz com que o Paladar os deseje. A não ser por isso, ele é suficiente inofensivo, mas ele tem uma falha que é ruim para um servo: ele é preguiçoso. Como seu trabalho é muito importante, esse hábito da preguiça deve ser tratado.

Deve dar muito Prazer à Alma Humana.—O Olfato pode ser uma forma de promover muito prazer à Alma Humana, porque há muitos cheiros suaves e agradáveis no mundo, como o cheiro de um cipreste, limoeiro em flor, da murta. Cheiros que o Olfato pode carregar, e assim acrescentar prazer da vida. Mas esse não é apenas seu único uso.

Deve servir no Conselho de Saúde.—O Olfato deve ser rápido em detectar quando há o mínimo de impurezas no ar, quando uma sala está fechada, quando um esgoto está inoperante, quando há algum odor desagradável e prejudicial, por mais leve que seja; porque todos os odores são realmente átomos flutuando no ar, os quais, [p 26] respirando, absorvemos para nossos corpos. Como respiramos o dia inteiro e a noite inteira, e apenas comemos três ou quatro vezes por dia, talvez seja mais prejudicial à saúde respirar maus odores do que comer alimentos que não sejam adequados, embora ambos sejam ruins. Mas há pessoas nas quais o Olfato ficou tão inativo que elas se inclinam sobre um ralo aberto sem perceber nenhum cheiro ruim. Pouco a pouco, ouvimos dizer que estão cheios de febre, e ninguém pensa em censurar aquele servo preguiçoso, Olfato, que foi a causa de todo o dano.

Prática na captura de odores.—O exercício de detectar toda fragrância doce e deliciosa e aprender a identificá-las é uma boa regra. Identificar com os olhos fechados: as folhas de várias árvores, várias flores, alimentos, materiais para vestuário, todos por seus odores é uma boa regra na prática da captura de odores. Dessa maneira, o Olfato seria mantido em boas condições de funcionamento; sendo possível detectar quando o ar estiver fresco ou empoeirado ao entrar em uma sala.

Tato, o mais difundido.—Existem cinco desses pajens classificados juntos sob o nome de Os Cinco Sentidos, mas os três dos quais temos agora a falar não são muitos pajens para os Escudeiros do Corpo, como funcionários do Corpo. O Tato é um sujeito muito insinuante. Ele está presente em todo o corpo de uma só vez, e há apenas um ou dois lugares, onde ele não está presente, como as unhas e os dentes. Ele coleta uma grande quantidade de informações úteis. É ele quem descobre se as coisas são duras ou macias, quentes ou frias, ásperas ou suaves, se perfuram ou arranham, picam ou queimam.

Muito Útil.—Você vê imediatamente como o trabalho do Tato é útil, pois sem o Tato alguém poderia acidentalmente colocar o dedo no fogo e não saber que ele estava queimando. [p 27] Facas podem cortar, alfinetes picar, queimaduras provocadas pelo frio podem gangrenar e o fogo pode queimar, e devemos estar cientes, posto que nossos corpos podem estar sofrendo ferimentos mortais. Algumas pessoas têm um senso de tato extremamente delicado, especialmente nas pontas dos dedos, e isso lhes permite trabalhar com coisas delicadas, como molas de relógio e rendas muito finas.

O Tato dos Cegos.—Pessoas cegas aprendem a descobrir através das pontas dos dedos o que seus olhos não lhes dizem mais. Eles aprendem até o rosto de seus amigos pelo toque e podem dizer se estão bem ou doentes, felizes ou arrependidos. Às vezes, você ouve dizer que uma pessoa tem um toque agradável ao tocar piano, e parece que as pontas dos dedos dela não sentem apenas as teclas do instrumento, mas também a música que produzem.

Um ‘ToqueGentil.—Algumas pessoas, e principalmente as mães, novamente, têm um toque tão gentil que suas mãos parecem suavizar nossos problemas. Mas esse tipo de toque só é aprendido pelo amor. Você lembra que Shakespeare pensou que o pobre príncipe Arthur possuía este dom; certamente muitos filhos amorosos têm mãos confortadoras.

Prática do Toque.—As pessoas cujos sentidos são mais aguçados e delicados são as mais vivas e as que possuem o maior interesse pela vida; então vale a pena praticar nossos sentidos; fechar os olhos, por exemplo, e aprender a sensação de diferentes tipos de material, diferentes tipos de madeira, metal, folhas de árvores, diferentes tipos de cabelo e pêlo—na verdade, o quê quer que seja que se deparar.

O Tato tenta dominar Alma Humana.—Você ficará surpreso em saber que esse Tato, servo simples e útil quanto é, assim como os outros, procura dominar Alma Humana. Você já percebeu que é [p 28] difícil assistir às aulas ou outro trabalho porque você sofreu uma alfinetada, uma picada ou um corte que, como você diz, ‘dói’? Quando as pessoas se permitem pensar nessas pequenas coisas que não podem ser reparadas, elas não têm mais pensamentos adicionais que valem a pena; assim, uma das menores forças de suas vidas se torna mestre de todo o resto. Você se lembra da história do garoto de Esparta e da raposa? Não é necessário que sejamos espartanos, porque, se algo doloroso puder ser ajudado, é certo e necessário que falemos sobre isso ou façamos algo para eliminar a causa da dor.

É bom ter Pequenas Coisas para Aturar.—Mas, por outro lado, acho que deveríamos ficar felizes em ter pequenas coisas para aguentar de vez em quando—um arranhão, um cataplasma de mostarda ou um colete que pinica—apenas para que possamos impedir que pensemos em tais assuntos. Há um caso de um homem que foi obrigado a cortar a perna, antes que o senhor James Simpson fizesse a abençoada descoberta do uso do clorofórmio. Este homem estava determinado a não pensar na dor e conseguiu manter a mente ocupada com outras coisas, a ponto de não estar ciente da operação. Isso seria demais para a maioria de nós, mas todos nós podemos tentar suportar a picada de um alfinete, ou mesmo a picada de uma vespa, sem fazer um alarde.

A visão Proporciona uma boa Parte da nossa Alegria.—Os dois sentidos de que ainda temos que falar são ministros do deleite para Alma Humana, e não sei se eles têm falhas graves como servos, exceto as da preguiça e desatenção. A visão proporciona uma boa parte da nossa alegria. Os rostos de nossos amigos, a alegre luz solar, flores e grama verde, e o tremular das folhas, roupas bonitas [p 29] e pequenos tesouros e imagens, montanhas e rios e o grande mar—onde estaria nossa alegria em tudo isso se não pudéssemos vê-los? Amigos gentis podem certamente ler para nós, mas nem sempre é a mesma coisa que ter nosso próprio livro e lê-lo embaixo da macieira ou no canto do assento à janela. Tenha pena dos cegos. Mas há outras pessoas as quais devemos ter pena, quase tanto quanto eles.

Olhos e Sem Olhos.—Você sabe como Olhos e Sem Olhos saíram para passear? Sem Olhos achou chato e disse que não havia nada para ver; mas Olhos viu centenas de coisas interessantes e trouxe para casa seu lenço cheio de tesouros. As pessoas que conheço são todas ‘Olhos’ ou ‘Sem Olhos.’ Deseja saber em qual classe você se enquadra? Deixe-me fazer duas ou três perguntas. Se você puder responder, nós o chamaremos Olhos. Se você não puder responder, ora, aprenda a responder a essas e outras mil perguntas desta forma. Descreva, de memória, uma foto na sala de estar de sua mãe sem deixar detalhes. Nomeie uma árvore (não um arbusto) que tenha brotos de folhas verdes? Você conhece algum pássaro com penas brancas em suas caudas? Se você não souber coisas como essas, comece a trabalhar. O mundo é um grande tesouro cheio de coisas para serem vistas, e cada coisa nova que se vê é um novo deleite.

Audição uma Fonte de Alegria.—Há muita alegria, novamente, a ser obtida por via do escutar—alegria que muitas pessoas sentem falta porque a Audição é, no seu caso, um servo ocioso que não atende aos seus negócios.

Você já esteve nos campos em um dia de primavera e não ouviu nada além de sua própria voz e as vozes de seus companheiros; mas, talvez, de repente você se calou e encontrou um concerto do qual você não tinha ouvido uma nota? No início, [p 30] você ouve as vozes dos pássaros; depois, gradualmente, você percebe vozes altas, baixas e médias, pequenas e grandes notas e começa a desejar saber quem canta cada uma das músicas que pode distinguir.

Quanto mais Escutamos, mais Ouvimos.—Então, quando você escuta mais, ouve mais. O chilro dos gafanhotos se torna tão barulhento que você imagina se consegue se ouvir falar por causa do barulho; as abelhas tomam conta de sua audição; você ouve o zumbido ou a trombeta de insetos menores, e talvez o tilintar e o gorgolejar de um riacho. O lugar silencioso está cheio de muitos sons e você se pergunta como poderia estar lá sem ouvi-los. Isso apenas mostra como a Audição pode dormir no cargo dela. Mantenha-a acordada e viva; faça-a tentar ouvir e conhecer novos sons todos os dias, sem a ajuda da vista. É um bom plano ouvir com os olhos fechados.

Alguns sons agradáveis.—Você já ouviu as folhas da faia caírem uma a uma no outono? Esse é um som muito agradável. Você já ouviu o tap tap do pica-pau ou ouviu um sabiá quebrando cascas de caracol numa pedra? Claro que você pode identificar a diferença entre um cavalo e um par pelo som. Você pode distinguir um tipo de carruagem de outro ou o carrinho de uma mercearia de uma carruagem? Você conhece os passos de todas as pessoas na casa? Você conhece o som de todos os sinos da casa? Você ouve as vozes das pessoas e pode entender pela entonação se as pessoas estão tristes ou contentes, satisfeitas ou descontentes?

Música, a Grande Alegria que devemos a Audição.—A Audição nos diz muitas coisas interessantes, [p 31] mas a grande e perfeita alegria que devemos a ela é a Música. Muitos grandes homens colocaram seus lindos pensamentos, não em livros, quadros ou edifícios, mas em partituras, para serem cantados com a voz ou tocados em instrumentos, e tão completas são essas composições musicais das mentes de seus criadores, que as pessoas que gostam de música sempre podem dizer quem compôs a música que ouvem, mesmo que nunca tenham ouvido a obra antes. Assim, de certa maneira, o compositor fala com eles, e eles ficam perfeitamente felizes em ouvir o quê ele tem a dizer. Às vezes, crianças pequenas conseguem apreender bastante dessa habilidade; de fato, eu conhecia um garoto de três anos que sabia quando sua mãe estava tocando ‘Wagner,’ por exemplo. Ela tocou muito para ele, e ele ouviu. Algumas pessoas têm mais competência dessa maneira do que outras, mas todos nós podemos ter muito mais do que possuímos se escutarmos.

Como obter o Ouvido Auditivo.—Utilize todas as oportunidades de ouvir música (não me refiro apenas ouvir melodias, embora estas sejam muito agradáveis); para se perguntar qual música foi tocada e, aos poucos, você descobrirá que um compositor tem um tipo de coisa para lhe dizer e outro fala outras coisas; essas mensagens dos músicos não podem ser colocadas em palavras; portanto, não há como ouvi-las se não treinarmos nossos ouvidos para ouvir. Uma grande ajuda para aprender a ouvir música é conhecer as notas, poder dizer com os olhos fechados qualquer nota ou acorde que seja tocado no piano ou cantado com a voz. Isso é tão divertido quanto um quebra-cabeça, e se descobrimos que somos um tanto insensíveis para ouvir no começo, não precisamos desanimar. O ouvido auditivo vem, como um bom golpe, com muita prática; e chegará o tempo em que você será capaz de distinguir um grande [p 32] coro de pássaros entre diferentes vozes e dizer qual é o sabiá, qual é o melro preto, qual o garganta branca, qual é o cambaxira, quais são os tentilhões. Pense em como a pessoa deve ficar feliz por reconhecer a nota de cada pássaro; assim como a voz de um amigo que ela conhece!

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PARTE II

A CÂMARA DA MENTE

CAPÍTULO I

NOSSO SER

‘Nosso Ser’, um Vasto País ainda não Explorado.—Quando pensamos em nossos corpos e nos maravilhosos poderes que eles possuem, suspiramos: “Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso.” Agora, consideremos esse Eu ainda mais deslumbrante, que não podemos ver nem tocar como podemos com nossos corpos, mas que pensa, ama e ora a Deus; que é feliz ou triste, bom ou ruim. Esse eu interior é, como dissemos, semelhante a um vasto país que ainda não fora explorado, ou à uma grande casa construída como um labirinto, no qual você não consegue encontrar o caminho. As pessoas frequentemente falam de ‘Nosso Ser’ como a junção de Corpo, Mente, Coração e Alma; e faremos o mesmo, porque é uma maneira conveniente de descrever-nos. É mais conveniente dizer: ‘O sol nasce às seis e se põe às nove,’ do que dizer: ‘Quando a Terra gira diariamente em volta do Sol, a parte da Terra em que vivemos fica à vista do Sol por volta das seis horas da manhã de março.’ ‘O sol nasce e se põe’ é uma maneira melhor de descrever [p 34] isto, não apenas porque é mais fácil dizer, mas porque é o que todos parecem ver e saber. Do mesmo modo, todo mundo parece saber sobre seu próprio coração, alma e mente; embora, porventura, a verdade seja que não haja divisão em partes, mas que cada um de nós tenha muitos poderes diferentes e faça muitas coisas diferentes em momentos diferentes.

Autocontrole, Autoconhecimento, Auto-Reverência.—Pareceria até como se tivéssemos dois egos internos: um que deseja fazer algo errado ou imprudente, e outro que diz: ‘Você não deve.’ E uma das grandes coisas que temos que aprender na vida é como, onde e quando usar esse poder, que chamamos de Autocontrole. Antes de podermos ter o verdadeiro Autocontrole, precisamos conhecer bastante sobre nós mesmos, ou seja, precisamos adquirir o Autoconhecimento. Muitas pessoas pensam sobre si mesmas de modo bem diferente de todos os outros que a conhecem, o que é um erro. O Autoconhecimento ensina que o que é verdadeiro para todos os outros também é verdade para nós; e quando chegamos a saber quão maravilhosos são os poderes e quão imensas são as possibilidades de Alma Humana, somos cheios, não de orgulho, mas de Auto-Reverência. O que inclui reverência e pena dos malvados e degradados, porque cada um deles também é uma grande Alma Humana, embora possa ser uma Alma Humana negligenciada, arruinada ou deteriorada. O governo de Alma Humana é, como sabemos, a principal ocupação do homem; e continuaremos a considerar os membros deste governo.

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CAPÍTULO II

MEU LORDE INTELECTO

Apresenta Alma Humana a Deliciosos Domínios.—Para começar com Meu Lorde Intelecto: ele é o Secretário de Relações Exteriores, porque conduz assuntos e estabelece relações com muitos reinos estrangeiros. Através dele, Alma Humana obtém a liberdade de províncias ricas e estados poderosos.

Ciência, uma Região Vasta e Alegre.A Ciência é uma dessas províncias. Aqui, as estrelas são medidas, o oceano tem sons, e o vento fez-se o servo do homem; aqui, toda flor que desabrocha revela o segredo de seu crescimento, e todo grão de areia relata sua história. Este é um domínio vasto e alegre; pois as pessoas que andam nele estão sempre descobrindo coisas novas, e cada coisa nova é uma delícia, porque as coisas não são misturadas, mas cada uma faz parte do grande todo. O reino da Ciência é tão imenso que um dos maiores e mais sábios viajantes, que havia descoberto muitas coisas, disse, quando era velho, que era como uma criança brincando com seixos na praia. Você também deseja andar nos agradáveis ​​caminhos da Ciência? Meu Lorde Intelecto fará as apresentações necessárias e fará de tudo para facilitar seu progresso.

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A Imaginação Aplaude o Viajante Aqui.—Eu deveria ter mencionado que o colega do Intelecto, meu Lorde Imaginação, Explorador-chefe (você lembra dele?), geralmente navega com viajantes nos caminhos da Ciência e os aplaude, abrindo vistas novas e deliciosas em frente aos olhos deles.

História, um Lugar Agradável.A História é outro domínio glorioso do qual Meu Lorde Intelecto detém a chave e envia a Imaginação como um mensageiro e companheiro ao viajante zeloso. De todos os lugares agradáveis ​​do mundo da mente, não sei se nenhum é mais agradável ​​do que aqueles que estão no domínio da História. Você já olhou através de um cinetoscópio? Muitas figuras estão lá, vivendo e se movendo, dançando, andando em procissão, o que quer que estivessem fazendo no momento em que a foto foi tirada. A História é um pouco assim, mas muito mais interessante, porque nessas curiosas fotografias vivas as figuras são muito pequenas e bastante sombrias, e a atenção mais atenta não pode torná-las mais claras; agora, a História mostra suas personagens, vestidas como eram vestidas, movendo-se, olhando, falando, como olhavam, moviam-se e falavam, envolvidas em assuntos sérios ou prazerosos; e, quanto mais você olha para uma pessoa, mais claramente ela se destaca até que finalmente se torne mais real para você do que as pessoas que moram em sua própria casa.

Os Espetáculos da História.—Pense em todos os séculos e em todos os países cheios de uma grande procissão de pessoas que vivem e se movem. Pense nos pequenos desvios da história em que você vê coisas curiosas que o aproximam muito das pessoas envolvidas, como a carta de um menino no Egito, cerca de quatro mil anos atrás, na qual ele diz ao pai que não será [p 37] bom ou fará suas lições, a menos que seu pai o leve ao grande festival que está chegando. Mesmo garotinhos no Egito, quatro mil anos atrás, não eram, ao que parece, todos bons. Aqui vemos Alcibíades percorrendo as ruas de Atenas, bonito, espirituoso e vencedor, imprudente e arrogante, e tão sem princípios que nem Sócrates poderia torná-lo bom. Ou vemos o rei Henrique VIII andando de braços dados com Sr. Thomas More em seu jardim em Chelsea, e sua querida filha Margaret pairando em volta e trazendo ameixas para o pai depois que o rei foi embora.

Estamos Fazendo História.—Também vemos os trabalhadores, o ferreiro em sua forja, o lavrador no campo, o mastro decorado no centro da vila, com meninos e meninas dançando em volta. Uma vez que o Intelecto nos admite nos reinos da História, vivemos em um mundo grande e emocionante, cheio de entretenimento e às vezes de arrependimento; e, finalmente, começamos a entender que nós também estamos fazendo história e que somos todos parte do todo; que as pessoas que vieram antes de nós eram todas muito parecidas conosco, ou então não deveríamos ser capazes de entendê-las. Alguns deles eram piores que nós e, em algumas coisas, seus tempos eram piores que os nossos, mas ainda assim conhecemos muitos que eram nobres e grandes, e nossos corações batem com o desejo de ser como eles. Isso nos ajuda a entender nossos próprios tempos. Vemos que também vivemos em uma grande era e em um grande país, onde há muito espaço para heróis; e se esses heróis são silenciosos, de quem o mundo nunca ouve, isso não faz muita diferença. Nunca houve uma situação em que alguém tenha se mostrado ser um mínimo de herói e de bom, e isso não tenha resultado em um imenso número de pessoas sendo beneficiadas; de fato, foi [p 38] dito que o mundo inteiro se melhora com cada vida obediente e assim será até o fim dos tempos.

Não Podemos Nos Sentir em Casa na História Sem Imaginação.—Mas precisamos ler História e pensar sobre ela para entender como essas coisas podem ser; e devemos uma grande gratidão aos historiadores, dos quais Heródoto foi chamado de ‘pai,’ que chamaram a Imaginação para retratar para eles os homens e eventos do passado (sobre os quais eles leram e pesquisaram diligentemente), para que tudo parecesse acontecer novamente diante de seus olhos, e eles pudessem escrever sobre isso para nós. Mas a visão e a escrita deles não são de grande utilidade para nós, a menos que, no nosso caso, o Lorde Intelecto convide a Imaginação para ir com ele, e então pensemos nas coisas e cheguemos às nossas próprias conclusões, até que finalmente se tornem reais e vivas para nós.

Matemática, Uma Terra Montanhosa.—Outro domínio aberto ao Intelecto tem um nome pouco convidativo, e viajar para lá é difícil, com faces íngremes de rocha para escalar e ravinas profundas para atravessar. O Principado da Matemática é uma terra montanhosa, mas o ar é muito bom e dá saúde, embora algumas pessoas achem muito raro respirá-lo. É diferente da maioria dos países montanhosos no fato de que você não pode se perder e que cada passo dado é dado em terreno firme. As pessoas que buscam seu trabalho ou se divertem neste principado se vêm preparadas pelo esforço e satisfeitas com a verdade. De vez em quando, o Intelecto pede a ajuda da Imaginação enquanto ele viaja para cá, mas não com frequência. Meu Lorde Procurador-geral Razão é seu camarada escolhido.

A Filosofia Explora o Reino de Alma Humana.—Outro domínio que abre perspectivas interessantes para o Intelecto [p 39] é o da boa Filosofia, um domínio com o qual já estamos um pouco familiarizados, pois é da Alma Humana, com suas alturas montanhosas, florestas sombrias e regiões inexploradas. A Filosofia oferece viagens fascinantes e deliciosas, e o viajante aqui aprende muitas lições da vida; mas ele não encontra o mesmo ponto firme que aquele cujo caminho o leva através do Principado da Matemática encontra. Ainda assim, a certeza não é a melhor coisa do mundo. Procurar, esforçar-se e sentir o caminho para um ponto de apoio de um ponto a outro também é emocionante; e cada passo ganho é um local de descanso e uma casa de tranquilidade para Alma Humana.

Literatura, Um Reino Muito Rico e Glorioso.—Talvez o menos difícil de abordar, e certamente um dos mais alegres e satisfatórios de todos os reinos em que o Intelecto é convidado a viajar, é o reino muito rico e glorioso da Literatura. O Intelecto não pode andar aqui sem a Imaginação e, além disso, é bom ter, do outro lado, aquele colega dele, a quem chamaremos de Senso de Beleza. É uma grande coisa estar acostumado à boa sociedade e, quando o Intelecto caminha para o exterior neste belo reino, ele se torna íntimo das melhores de todas as eras e de todos os países. Poetas e romancistas pintam quadros para ele, enquanto a Imaginação limpa os olhos dele para poder vê-los: eles também enchem o mundo com pessoas profundamente interessantes e deleitosas que vivem suas vidas diante de seus olhos. Ele tem uma multidão de conhecidos e alguns amigos que contam a ele todos os seus segredos. Ele conhece Miranda, o melancólico Jaques e a terrível Lady Macbeth; Fenella e a Fair Maid de Perth, e muitas outras pessoas, todas únicas, que vivem em seus pensamentos.

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Como Reconhecer a Literatura.—Preste atenção, há um lugar ruim por perto, onde quadros são pintados para você e onde as pessoas são apresentadas; mas você não pode ver as imagens com os olhos fechados, e as pessoas não vivem e agem em seus pensamentos; há tanta diferença entre essa região externa e o interior do Reino da Literatura quanto entre um panorama e o país bonito e real que se pretende retratar. É uma péssima perda de tempo perambular nesta região externa, mas muitas pessoas passam grande parte de suas vidas lá, e nunca nem chegam perto das belezas e deleites do Reino da Literatura.

Há outro teste, além dos dois de cenas que você vê e das pessoas que conhece, esse teste distingue a Literatura da terra árida em suas fronteiras; e, se quiser aplicá-lo, o Intelecto deve manter seu Senso de Beleza sempre ao seu lado. Leia e veja se você encontra uma diferença de sabor, devo dizer, entre as duas passagens que se seguem. Experimente se a primeira lhe dá uma sensação de prazer apenas nas palavras, sem pensar no significado delas, se as próprias palavras parecem cantar para você;—

“Naquela época do ano tu podes em mim contemplar

Quando folhas amarelas, ou nenhuma, ou poucas, penduradas ficam

Sobre aqueles ramos que tremem contra o frio ao gear,

Coros nus e arruinados, onde tarde os doces pássaros cantaram.”

Agora leia a próxima passagem;—

“Deidades domésticas!

Então só haverá felicidade na terra

Quando o homem sentir seu sagrado poder e amor

Suas alegrias tranquilas.”

[p 41] Você consegue perceber que, embora a segunda passagem seja verdadeira, ponderada e bem expressa, ela perde um certo encanto, na redação, que faz com que as palavras voltem ao nosso coração com força viva? Se você não conseguir ver nenhuma diferença de valor entre essas duas passagens, talvez o possa algum dia. A questão é: manter o olho nas palavras e esperar para sentir sua força e beleza; e, quando as palavras são tão adequadas que nenhuma outra palavra pode ser colocada em seus lugares, tão poucas que nenhuma pode ser deixada de fora sem estragar o sentido, e tão frescas e musicais que elas o encantam, então você pode estar certo de que está lendo Literatura, seja em prosa ou poesia. Uma grande quantidade de boa literatura pode ser reconhecida por esse único teste.

Nosso Senso de Beleza.—Existe outra região aberta ao Intelecto, de grande beleza e deleite. Ele precisa estar acompanhado da Imaginação para viajar para lá, mas ainda mais importante deve ser aquele companheiro de bom ouvido e olho, que lhe permitiu reconhecer música e beleza nas palavras e em seus arranjos. O Sentido Estético, na verdade, possui a chave deste palácio de delícias. Existem poucas alegrias na vida maiores e mais constantes do que a nossa alegria em Beleza, embora seja quase impossível colocar em palavras o que consiste a Beleza: cor, forma, proporção, harmonia—esses são alguns de seus elementos. As palavras dão uma idéia dessas coisas e, portanto, uma idéia de Beleza, e é por isso que é somente através do nosso Sentido de Beleza que podemos ter pleno prazer na Literatura.

Beleza na Natureza.—Mas a beleza está em toda parte—em nuvens brancas contra o azul, no tronco cinzento da faia, na brincadeira de um gatinho, no vôo adorável [p 42] e na bela coloração dos pássaros, nas colinas e nos vales e nas montanhas e córregos, na flor-de-vento e no desabrochar da giesta-das-serras. O que chamamos de Natureza é inteiramente Beleza e deleite, e a pessoa que a observa atentamente e a conhece bem, como o poeta Wordsworth, por exemplo, tem seu Senso de Beleza sempre ativo, sempre trazendo alegria.

Não podemos afastar-nos da Beleza, e nos deleitarmos mais, talvez, nos rostos e ações de muitas crianças pequenas e de algumas pessoas adultas.

O Palácio da Arte.—Também temos o prazer na organização e decoração de uma bela sala, um belo vestido, a capa de um livro, os acessórios de ferro de uma porta, quando isso é o que chamamos de artístico. Isso nos leva a outro mundo de Beleza criado para nós por aqueles cujo Senso de Beleza permite que eles não apenas vejam e tenham alegria em toda a Beleza que existe, mas cujas almas ficam tão cheias da Beleza que eles reúnem pelos olhos e ouvidos, que produzem para nós novas formas de Beleza—em imagem, estátua, catedral gloriosa, em delicado ornamento, em fuga, sonata, melodias simples. Quando pensamos por um momento, como devemos admirar a bondade de Deus em nos colocar em um mundo tão excessivamente cheio de Beleza—seja do que chamamos de Natureza ou do que chamamos de Arte—e por nos dar esse Senso da Beleza que nos permite ver e ouvir e ser como se estivesse impregnada de alegria com um único efeito bonito trazido ao nosso ouvido ou ao nossos olhos.

O Salão da Simulação.—Mas, como todos os bons presentes que recebemos, este também é capaz de sofrer negligência e uso indevido. Não basta que haja sempre um Mundo de Beleza ao nosso alcance; devemos garantir que nosso Senso de Beleza esteja em alerta e seja [p 43] rápido em discernir. Podemos facilmente, durante toda a nossa vida, ser como aquele homem de quem o poeta fala:—

“Uma prímula na beira do rio

Uma prímula amarela foi para ele,

foi isso e nada mais”

—Isto é, ele não se deu conta do senso sutil de Beleza que jazia não tanto na prímula nem no rio, mas sim no fato de a prímula crescer ali mesmo. Nosso grande perigo é que, como existe um país árido que alcança as próprias fronteiras do Reino da Literatura, também existe um Salão de Simulação monótono e sombrio, no qual podemos entrar e acreditar que seja o Palácio de Arte. Aqui as pessoas estão ocupadas pintando, esculpindo, modelando e assim por diante; o próprio sol trabalha aqui com suas fotografias, e ele é um artista tão bom quanto o resto, ou melhor, pois a noção neste salão é de que o objetivo da arte é tornar as coisas exatamente como na vida. Assim, esses chamados artistas trabalham para obter a cor e a forma das coisas que veem, pintá-las em tela ou moldá-las em mármore ou modelá-las em cera (flores), e o tempo todo perdem, porque não veem, aquela presença sutil que chamamos de Beleza nos objetos que pintam e moldam. Muitas pessoas se deixam enganar nesse assunto e passam a vida sem nunca entrar no Palácio de Arte, e notando pouco da Beleza da Natureza. Todos nós precisamos ser treinados para ver e ter nossos olhos abertos antes de podermos apreciar a alegria que é destinada a nós nesta bela vida.

A Vida Intelectual.—Não posso contar mais sobre as deliciosas e ilimitadas fontes de prazer abertas ao Intelecto e seus colegas agora; mas, se você entende o que foi dito, ficará surpreso [p 44] ao saber que muitas pessoas vivem dentro de limites estreitos e raramente entram em um dos grandes mundos que acabamos de considerar. A felicidade da vida intelectual vem de conhecer e pensar, imaginar e perceber ou melhor, provém do leque de coisas que conhecemos e pensamos, imaginamos e percebemos. A mente de todos está ocupada, dessa maneira, com alguma coisa ou outra, mas muitas pessoas sabem e pensam somente em pequenas coisas. É muito bom pensar nelas por um tempo, mas essas pessoas sempre pensam nessas pequenas coisas e não têm espaço para os grandes pensamentos que grandes coisas nos trazem.

Assim, a cabeça de um menino pode estar tão cheia de sua coleção de selos ou da próxima partida de críquete que não há espaço para coisas maiores. Os selos e o críquete tem sua vez, mas não está certo, de maneira alguma, perder as oportunidades de grandes interesses que chegam até nós e passam despercebidos, enquanto pensamos apenas nessas pequenas questões. E não só isso: meninos e meninas podem estar tão cheios de marcas e lugares, prêmios e bolsas de estudos, que nunca vêem que seus estudos visam destrancar a porta para eles nesta ou naquela região de alegria e interesse intelectual. Terminada a escola e a faculdade, seus livros estão fechados para sempre. Quando se tornam homens e mulheres, ainda vivem entre interesses estreitos, com uma visão quase inexistente para o vasto mundo, passado ou presente. Serão os escravos do conhecimento e não seus alegres mestres. Que se diga de nós como era do falecido Bispo de Londres: “O dom dele era o dom raro de dominar o conhecimento como seu esplêndido servo, não sendo dominado por ele como seu escravo cansado.”

[p 45]

CAPÍTULO III

OS DEMÔNIOS DO INTELECTO

A inércia não nos deixa começar.—Como o Corpo, a Mente também tem seus Demônios. Os dois primeiros que assolam o Intelecto, são uma espécie de preguiça ou inércia; que não nos permite começar a pensar em nada, além dos corriqueiros assuntos da vida cotidiana. Se apenas começarmos, o Intelecto se agrada, forte e ansioso por seu trabalho:—

 “Você está sendo sincero? Aproveite este minuto;

O que você pode fazer, ou sonhar que possa, comece;

Ousadia tem genialidade, poder e magia!

Apenas se envolva, e então a mente se aquece;

Comece e o trabalho será concluído.”

O Fausto, por Marlowe.

Ficamos muito felizes, e o tempo voa; no entanto, da próxima vez que chegarmos à mesma cerca, o Intelecto empaca e temos que instigá-lo a saltar; ai depois, tudo vai bem. É bom ter isso em mente, porque, se cedermos, o Intelecto voltará a empacar diante de uma pequena dificuldade.

O hábito passa sempre pelo mesmo Terreno.—O outro Demônio do Intelecto é o Hábito. Agora, como você sabe, o Hábito é, seja para o corpo ou para a mente, um bom servo e um mau mestre. É quando ele pode interpretar o mestre mau e substituir o Intelecto que ele estraga e estreita a vida. Sob controle do Hábito, [p 46] não se pode dizer que o Intelecto é preguiçoso; ele é rápido o suficiente, mas segue o mesmo caminho, dia após dia, ano após ano. O caminho pode ser bom e pode ser necessário segui-lo. O erro é manter-se sempre na mesma trilha batida. Pode ser a repetição mecânica de lições, sem pensar no que se trata. Pode ser tarefas domésticas, negócios, caça, tiro, vestimenta—coisas boas à sua maneira; mas confinar-lhes o Intelecto é como prender um cavalo de corrida a um carrinho de mão.

Não podemos permanecer em um Campo de Pensamento.—Não são apenas os assuntos e interesses da vida cotidiana que privam a Mente de sua gama adequada de interesses e ocupações. É possível que uma pessoa entre em qualquer um dos grandes campos de pensamento que consideramos e permaneça ali com trabalho e prazer constante até que se torne incapaz de encontrar seu caminho para qualquer outro grande campo. O maior homem da ciência de nossa época teve esse infortúnio. Ele se perdeu, por assim dizer, na Ciência, e no final não conseguia ler poesia, ver quadros, nem pensar em Deus, porque não conseguia desviar a mente do curso em que a exercitara em toda a sua vida. As pessoas que viveram quando, talvez, as melhores coisas foram feitas, os melhores quadros pintados, os maiores edifícios erguidos, as maiores descobertas feitas, foram muito particulares nesse ponto. O mesmo homem era arquiteto e pintor, escultor e poeta, além de mestre de muito conhecimento; e tudo o que ele fez, ele fez bem; tudo o que sabia era parte de seu pensamento e prazer diário.

Vasari, seu biógrafo, diz de Leonardo da Vinci, o grande pintor:—“Possuidor de um intelecto divino e maravilhoso, e sendo um excelente geômetra, [p 47] ele não apenas trabalhou em escultura, … mas também preparou muitos planos arquitetônicos de edifícios, sendo ele o primeiro, embora tão jovem, a propor a utilização do Arno para a construção de um canal de Pisa a Florença. Ele fez desenhos para moinhos e outros motores passarem pela água, e como a pintura era sua profissão, ele estudou desenho sobre objetos vivos.”

Uma Mente Magnânima.—Talvez seja um erro pensar que, para fazer uma coisa bem, devemos apenas fazer e pensar sobre isso e nada mais o tempo todo. É nossa obrigação conhecer tudo o que podemos e gastar parte de nossas vidas no aumento do conhecimento da Natureza e da Arte, da Literatura e do Homem, do Passado e do Presente. Essa é uma das maneiras pelas quais nos tornamos pessoas maiores, e quanto mais uma pessoa é, melhor ela fará o que for necessário em seu trabalho. Vamos ter, como Leonardo, um espírito ‘invariavelmente real e magnânimo.’

[p 48]

CAPÍTULO IV

MEU LORDE EXPLORADOR-CHEFE, IMAGINAÇÃO

Imagens Vivas.—Meu Lorde Explorador-Chefe, Imaginação, merece uma introdução mais completa do que a menção curta que teve como colega do Intelecto. Ele é um personagem incrível, com poder de produzir, como vimos, uma procissão de imagens vivas em todas as regiões abertas ao Intelecto. Grandes artistas, sejam eles poetas ou pintores, arquitetos ou músicos, têm o poder de expressar e mostrar para o resto de nós uma parte, de alguma forma, das maravilhosas visões que a Imaginação lhes revelou. Mas a razão pela qual gostamos de suas obras, poemas ou contos é porque a Imaginação faz o mesmo tipo de coisa para todos nós, ainda que em menor grau. Todos temos obras e poemas feitos para nós nas cortinas internas de nossas mentes. As crianças pequenas tentam expressar suas visões em seus jogos: brincam sobre eventos, e muitas vezes de uma maneira muito estranha, porque sabem tão pouco, que fazem uma confusão de fatos, chamando uma vaca de hiena e esperando encontrar um leão e um tigre em cada pedacinho de bosque.

A Imaginação Cultivada.—Quanto mais sabemos, mais ordenada e mais rica a Imaginação se torna em nós. Você já leu Proezas no Fiorde? [p 49] A senhorita Martineau, que escreveu o livro, nunca visitou a Noruega, mas ninguém poderia descrever a vida nos fiordes com mais vivacidade do que ela; isso é porque sua imaginação estava a vontade em terras distantes, como sem dúvida estava também em épocas passadas. Você já pensou como Sir Walter Scott deve ter vivido, em Imaginação, nos diferentes tempos e cenas que ele nos dá em seus livros? Não é de admirar que as pessoas o chamassem de ‘Mago.’ Para ter uma galeria de imagens ricamente armazenada da Imaginação, precisamos ler muito e, como dizem os franceses, descobrir para nós mesmos, com o tempo, o que lemos.

A Imaginação não deve fazer Retratos da Própria Pessoa.—A Imaginação, ministra como deve ser para a alegria e a amplitude da vida, tem, infelizmente, seus dois assombrosos demônios—o Si Mesmo e o Pecado. Não há quem não imagine. Você é uma princesa com cabelos dourados e olhos azuis e seu manto de seda tem uma cauda bem longa, e o príncipe chega e, após grandes feitos de bravura que fazem o mundo se maravilhar, ele se ajoelha diante de você e pede que você seja sua noiva:—

“Pequena Ellie em seu sorriso

Escolhe—‘Vou ter um amante,

Montando no corcel dos corcéis:

Ele me amará sem dolo,

E para ele vou descobrir

O ninho do cisne entre os juncos.’”

Ou você é o próprio príncipe valente que subjuga os bárbaros e conquista muitas terras, e o rei o coloca à sua mão direita na guerra e no banquete. São sonhos bonitos, e não há muito mal neles, exceto que, enquanto se sonha, se esquece de fazer, e a vida é composta por fazer e não sonhar. Quando as pessoas encontram falhas em nós, é muito agradável sonhar [p 50] que faremos coisas belas e maravilhosas—cuidar dos enfermos, construir palácios para os pobres e fazer lindos jardins de deleite para a mãe ou o pai que encontra defeitos em nós—e pensar em como todos vão nos admirar pela nossa beleza, bondade e inteligência, especialmente as pessoas que riram de nós; pensar também em como seremos gentis com eles e quais presentes daremos a eles; e como sentirão vergonha por nem sempre terem sido educados e gentis conosco!

Não creio que seja lícito deixar a Imaginação nos construir casas de deleite dessa maneira. Em primeiro lugar, como eu disse antes, enquanto estamos sonhando, estamos deixando todas as nossas chances escapar de nós. Em seguida, quando sonhamos ser um personagem importante e poderoso, sempre tão bom e ótimo, ficamos muito facilmente ofendidos; e a Imaginação deixa de lado suas tarefas de construção para atirar pedras em nossos amigos. A imaginação nos diz que a ‘Mãe’ não nos entende, não sabe nem metade das grandes pessoas que somos; que o ‘Pai’ não é gentil; que Lucy ou Edward são mais amados que nós; que as aulas são odiosas; que dar um passeio é um incômodo; que visitar as pessoas é um estorvo; que qualquer livro, exceto um livro de histórias, é monótono; e, aos poucos, outras pessoas nos acham exatamente o que imaginamos sobre elas.

Nossos melhores amigos reconhecem que somos tediosos e desagradáveis, irritantes e ressentidos; eles dizem que não há como nos agradar; queixam-se de que não há como nos fazer participar de jogos ou ter qualquer interesse em planos. Dizem que não tentamos ser agradáveis ​​e não ajudamos ninguém. Os pequenos dizem que somos zangados e não nos convidam a brincar com eles, e os grandes nos acham irritados [p 51] e nos deixam sozinhos. É muito irritante, porque sabemos o tempo todo que temos pensamentos bonitos sobre o que devemos fazer para cada um deles, e o mínimo que eles podem fazer é serem gentis enquanto isso!

Como Exorcizar o Demônio.—Mas os outros estão certos e nós estamos errados. Apenas pergunte a si mesmo: quem é a pessoa principal em todas as imagens bonitas que você cria, em todos os planos que você forma? Se você tem que confessar que é você, então a Imaginação acaba de criar casas de deleite para Si Mesmo, em vez de colecionar imagens do grande mundo rico. Cuide disso agora, para que no futuro este glorioso servo trabalhe em seu legítimo chamado. Então você será uma maravilha para seus amigos, porque terá muito a contar e estará interessado em muitas coisas. Você não vai incomodá-los ou a si próprio com aquele Eu irritante, exigente e relutante, um tirano em qualquer lar. De fato, você encontrará tantas coisas agradáveis para pensar que dificilmente terá um momento para pensar em si mesmo. Desvie o Si Mesmo no momento em que ele se intrometer em qualquer imagem da Imaginação. Um bom plano é pegar o seu Eu pelos ombros, olhá-lo de frente e rir dele por ser um sujeito ridículo. É o que se chama ter ‘a graça salvadora do humor,’ e as pessoas que a possuem não se tornam absurdas colocando ares e graças. É quase, embora não tão bom quanto, quando o pessoal da sua casa ri de você e o provoca. Aprenda com as risadas e aguente as provocações com bom humor.

Imagens Vivas do Pecado.—O segundo Demônio da Imaginação é o Pecado. Você já ouviu pessoas dizerem: ‘Parece haver uma epidemia de assaltos’ ou ‘de assassinatos’? Eles estão certos. [p 52] Há uma epidemia dessas coisas. Elas se espalham de uma maneira curiosa. As pessoas lêem sobre um crime nos jornais e permitem que sua Imaginação se detenha em todos os detalhes; a coisa toda se torna uma imagem viva da qual eles não podem se livrar, e o fim é que eles mesmos tentam o mesmo tipo de crime. É por isso que é imprudente alguém ler relatos de jornal sobre esse tipo de coisa, pois, mesmo que você não seja tentado a fazer a maldade, a imagem horrível dela permanece, depois de permitir que sua Imaginação o a pinte.

Imaginações Impuras.—Existe um tipo de pecado que devemos ter cuidado especial para não obtermos impressões; pois uma vez que as obtemos, elas nos assombrarão a vida toda. Estes são pecados de impureza. Se as pessoas falam desses pecados, não dê ouvidos; vá embora e faça alguma coisa diferente. Se você se deparar com a menção de tais pecados em sua leitura—dos clássicos, da poesia, da história—aprenda, por assim dizer, a fechar os olhos de sua Imaginação, ou seus pensamentos serão contaminados. Nunca leia algo intencionalmente ou ouça algo que possa sugerir imaginações impuras. Certa vez, visitei uma jovem mulher que estava morrendo, uma mulher casada, boa e agradável e ela me contou essa coisa horrível. Ela disse que o seu estado moribundo tinha se tornado miserável e que ela não podia fazer suas orações porque a horrível imaginação de impureza tinha a atingido. Ela disse que nunca havia pensado nessas coisas; mas, suponho, ela deve ter se permitido pensar em algum momento, talvez muitos anos antes, e esquecera-o: mas o espírito maligno aproveitou a terrível oportunidade para lembrá-la deles. Evite toda essa conversa, todas essas leituras e todas essas imaginações, mais do que você evitaria a peste.

[p 53]

Imagens Vivas de Horrores.—Não é da natureza do pecado, mas é muito tolo permitir que a Imaginação crie imagens vivas de horrores, acidentes terríveis, quedas de precipícios, fantasmas e outras coisas. Uma vez que fazemos uma imagem, ali ela fica, e pode aparecer a qualquer momento para atormentá-lo.

Ouvi falar de uma pessoa cuja natureza a inclina a tais terrores dizer: ‘Mas o que posso fazer?’ Essa é realmente uma pergunta tola sobre qualquer um dos males em que possamos cair. É claro que podemos fazer algo, e fazer isso é a batalha da vida. Nesse caso em particular, a ajuda está em fugir do pensamento para pensar em outra coisa.

Se tais terrores acontecem à noite, quando você não pode fazer nada ou ler qualquer coisa, sempre pode pensar em outra coisa. O último livro de histórias que você leu, por exemplo,—relembre a história em seus pensamentos.

[p 54]

CAPÍTULO V

O SENSO DE BELEZA

O Demônio da Exclusividade.—O Senso de Beleza agrega tanto à alegria da vida que é difícil ver que um perigo o acompanha. Mas, talvez, a Exclusividade seja o demônio que espera por um senso muito agudo da alegria da Beleza, seja na música, na pintura, no próprio ambiente ou mesmo em um cenário natural. A Exclusividade alcança os ouvidos do Primeiro-Ministro e o convence de que as alegrias da Beleza são tão cheias e satisfatórias que nada mais é necessário para completar a felicidade da vida. Em vão, o Intelecto é convidado para novos campos de pesquisa; em vão apresenta-se o trabalho bom e necessário; em vão estão clamorosos os deveres. A pessoa que é entregue à embriaguez da Beleza concebe que Beleza e Bondade são a mesma coisa, e seu Dever nada mais é do que buscar o próprio prazer da maneira que mais gosta. Outras pessoas também ficam excluídas.

Nós não podemos Escolher nossas Vidas.—Em vez de aceitar as relações, amigos e vizinhos que Deus nos envia no decorrer de nossas vidas, o devoto da Beleza escolhe por si mesmo e preocupa-se em conhecer apenas as pessoas cujas visões de vida são semelhantes [p 55] à dele. Assim, no que diz respeito aos lugares, ele não pode tolerar, nem por um momento, coisas que são feias e desagradáveis, e então ele, o devoto da Beleza, deixa de ir a lugares onde os trabalhadores e os pobres precisam viver. No final, ele sente falta da felicidade que o Senso de Beleza deveria lhe ministrar. Pois a felicidade vem do esforço, do serviço, da diversidade de interesses e, por último, do prazer. E quando as pessoas colocam o prazer, mesmo nas coisas bonitas, em primeiro lugar (e de fato no lugar de todo o resto), elas perdem a melhor coisa que procuram e ficam debilitadas no corpo, irritadas e descontentes.

Um Paraíso de Deleite.—Mas não precisamos deixar que o medo do mal mantenha-nos fora do paraíso de deleite que o Senso de Beleza destina-se a abrir para todos nós. Em duas coisas, devemos prestar atenção: em primeiro lugar, não devemos deixar que noções do tipo “melhor-do-que-meu-vizinho” entrem em nossas cabeças; e em segundo lugar, devemos tornar nossa meta, tanto quanto possível, levar a Beleza a lugares onde ela não está. Tendo essas duas precauções em mente, o demônio da Exclusividade não precisará ser um terror para nós.

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CAPÍTULO VI

MEU LORDE PROCURADOR-GERAL, RAZÃO

Razão, um Defensor.—Falei do Lorde Procurador-Geral, Razão, como um mero colega do Intelecto; mas, na verdade ele é uma pessoa de grande importância no governo de Alma Humana—tanto que ele frequentemente tem todo o governo em suas mãos. O Lorde Razão é um personagem de poderes admiráveis ​​e de caráter independente. Se algum dia você ouvir um grande advogado defendendo uma causa no tribunal, apresentando um argumento após o outro para provar seu ponto, com clareza magistral, até levar seus ouvintes ao que parece uma conclusão inevitável (até que o outro lado implore), você terá uma ideia de como a Razão se comporta. Você já se viu pensar? Parece que outra pessoa, um advogado pessoal, está avançando ponto após ponto até que você não possa deixar de chegar a uma conclusão. Você se lembra de Próspero no conto de Shakespeare, A Tempestade? Você sabe como ele negligenciou seus deveres como governante, e como seu irmão, pretendendo tirar sua vida, foi o responsável por seu exílio, com sua filha Miranda, em uma ilha desolada.

Como Raciocinamos.—Suponho que essa tenha sido o tipo de coisa que a Razão disse para Próspero: “O pensamento [p 57] do homem é a parte mais importante dele. É melhor viver com pensadores do que com pessoas comuns. Os maiores pensadores podem ser encontrados nos livros, não na minha corte. As pessoas comuns podem gerenciar os assuntos das pessoas comuns. Meu irmão Antônio pode governar por mim tão bem quanto eu mesmo, mas ele não pode ler e pensar por mim, e dedicar seu tempo à melhoria de sua mente para mim. Essas coisas um homem deve fazer por si mesmo. E também, há minha filha; Gostaria que ela também crescesse como pensadora. Para esse fim, devo me preparar ainda mais para ensiná-la. É bastante evidente, considerando todas essas coisas, que devo desistir desses assuntos e me dedicar aos meus livros.”

Agora, não é que Próspero tenha dito tudo isso a si mesmo, na verdade foi a Razão que disse isso a ele e por ele. Todo argumento é verdadeiro, embora não seja a verdade completa; e a Razão de Próspero não o teria convencido, a não ser que ele já fosse estudante e amante de livros. A Razão geralmente começa com uma noção que já está na cabeça de uma pessoa.

Vamos ouvir o que a Razão de Antônio lhe diria: “A maneira como meu irmão, o duque, negligencia seus negócios é vergonhosa; o estado vai se arruinar; todo mundo faz o que ele gosta. Ele espera que eu aja por ele, mas as pessoas sabem que eu não sou o duque, então não tenho poder. Se ele morresse, o ducado seria meu, e eu então faria o meu melhor para colocar as coisas em ordem novamente. Como seus súditos negligenciados me abençoariam! Até mesmo a tentativa de matá-lo dificilmente seria um crime, porque os sofrimentos de uma pessoa seriam para o bem de todos. As coisas pioram a cada dia mais. Isso deve ser feito. Não há ninguém para agir sobre esse assunto além de mim.” A Razão de Antônio, sem dúvida, apressou-se a supri-lo com [p 58] argumentos para apoiar a noção ambiciosa que ele já mantinha secretamente.

A Razão do Homem Bom.—A Razão do homem bom fornece rapidamente argumentos incontestáveis ​​para a boa ação que seu bom coração já está inclinado a fazer. Assim, Howard, o filantropo, sem dúvida foi convencido por muitas razões de que a árdua tarefa que ele se propôs foi um caminho bastante simples e direto. Ele viu o interior de uma prisão por acaso, e o pensamento de seus horrores trabalhou sobre ele. A Razão diria:—“As pessoas não sabem que essas coisas acontecem; alguém deve contar a elas. Quem deve mostrar essa vergonha para o mundo deve primeiro investigá-la minuciosamente. Não será suficiente falar sobre o conhecimento de uma ou duas prisões. Quando o mal for totalmente desmascarado e discutido, e levado ao Parlamento, sem dúvida será corrigido, novas leis serão aprovadas e os prisioneiros serão tratados como seres humanos, em vez de serem mantidos em estado de sujeira, miséria, doença e vício em que os encontro. Por que não devo ser esse homem? Esta ideia veio primeiramente a mim: esse pode ser meu chamado. Sou muito frágil, é verdade, mas um homem não pode morrer melhor do que no cumprimento de seu dever. Carrego uma grande tristeza, mas isso me liberta dos laços domésticos; e tenho dinheiro suficiente para os custos. Farei isso. Dedicarei minha vida à esta tarefa.”

Assim, sem dúvida, a Razão deste homem bom argumentou por ele. Mas se a compaixão divina não tivesse colocado essa noção de piedade em seu coração, você teria visto com que facilidade a Razão poderia ter adotado uma linha de argumentação oposta e o levaria à conclusão de que não era um assunto para um único homem empreender, mas era uma questão para os governos dos países.

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A Parte da Razão nas Boas Obras e nas Grandes Invenções.—Toda grande obra de benevolência para os doentes e os desamparados, os tristes e os ignorantes é o resultado de uma cadeia de argumentos que a Razão de um homem lhe forneceu; e sua Razão adotou essa linha porque, em cada caso, uma noção de piedade chegou primeiro ao homem. Todo grande trabalho, toda invenção foi fundamentada. Você já viu em um museu o tronco de uma árvore escavada por uma chama, que o homem primitivo usou para uma canoa? Foi um imenso raciocínio, tão inteligente quanto aquele pelo qual Marconi chegou à sua grande descoberta, que levou o homem, que nunca tinha visto um barco de qualquer espécie, a descobrir por si mesmo esse meio de atravessar as águas. Veja bem, ele não tinha nada para copiar: foi a primeira ideia. Onde e como ele conseguiu isso, consideraremos agora; mas o ponto é que sua Razão arranjou tudo para ele.

O que se Entende por Senso Comum.—A maioria das coisas simples que fazemos todos os dias, como escovar os dentes e pentear os cabelos, comportar-nos à mesa e assim por diante, foi primeiro raciocinada—não fazemos a menor ideia por quem—e as pessoas não raciocinam mais sobre elas, mas as aceitam pelo que é chamado de Senso Comum; ou seja, todo mundo, ou quase todo mundo, concorda que certas maneiras de fazer certas coisas são as melhores. De vez em quando aparece um reformador que raciocina as coisas antigas de novo e chega a uma conclusão diferente, talvez correta, talvez incorreta. Por exemplo, o Senso Comum da maioria das pessoas decide que devemos usar botas ou sapatos; mas um reformador surge e prova por uma longa cadeia de argumentos que é [p 60] melhor usar sandálias; outro dirá e provará que é melhor andar descalço; então as pessoas têm que pensar novamente e usar sua Razão sobre coisas que eles acreditavam terem sido resolvidas há muito tempo.

Tudo o que Usamos foi Pensado por Alguém.—É muito interessante observar em uma sala ou rua e tentar solucionar por nós mesmos a cadeia de raciocínio do homem que foi o primeiro a criar uma cadeira ou uma chave, ou um carrinho de mão. As coisas tornam-se muito mais importantes para nós quando nos lembramos que alguém pensou em cada coisa; e esse tipo de pensamento é muito agradável. Você mesmo sabe disso. Você diz: ‘Oh, pensei em um plano tão bom; algo que o tio disse plantou o pensamento na minha cabeça, e então todo o plano se formou bastante claro, um passo após o outro.’ Pode ser um plano para um novo jogo, para a construção de um navio ou para obter espaços para as pessoas pobres das cidades; mas, seja qual for a noção, é alegre e emocionante ficar quieto e ouvir, por assim dizer, enquanto Razão faz o trabalho dela e mostra todo o esquema completo diante de sua mente.

Não é de admirar que muitas pessoas pensem que não há nada maior, no céu ou na terra, que a Razão humana—mais surpreendente em seu funcionamento, mais perspicaz em suas conclusões!

Você recorda que a França revolucionária idolatrou a Razão—estabeleceu templos onde a deusa da Razão era adorada; e a nação francesa acreditava que ninguém era chamado para fazer nada além do que sua própria Razão ordenava, e que o que a Razão de um homem ditava, ele era obrigado a fazer. Você lembra também que coisas, temerosas como um pesadelo, foram feitas sob aquele reinado da Razão, [p 61] que é conhecido na história como o Reino do Terror, embora tudo o que foi feito fosse justificado pela Razão dos homens que o fizeram. Não existe mais um reinado reconhecido da Razão, mas muitas pessoas atenciosas e boas acreditam que não há autoridade superior; e que agir de acordo com sua própria Razão é o melhor que se pode esperar de qualquer homem.

Pessoas Boas e Sensatas Chegam a Conclusões Opostas.—É verdade que boas leis, iniciativas benevolentes, grandes invenções são o resultado da Razão; mas muitas vezes você se surpreenderá quando ouvir pessoas boas falarem e tentarem convencer os outros de coisas que sua própria Razão as convenceu. Em questões de guerra, paz e política, religião, educação, obras públicas, roupas, comida, de fato, sobre todo e qualquer ponto, você achará possível que a Razão de pessoas igualmente boas e igualmente inteligentes leve-as a conclusões bastante opostas. Essa é a causa de toda a controvérsia no mundo. As pessoas pensam que podem se convencer pelos argumentos que sua própria Razão aceitou. Elas poderiam, se o outro lado já não estivesse convencido por argumentos exatamente opostos; e de que lado um homem está convencido, geralmente depende de sua própria vontade:—

“Convença um homem contra sua vontade,

E ele ainda terá a mesma opinião”;

porque devemos lembrar que a Razão é o servo particular de cada homem, e joga do lado do seu senhor, por assim dizer, e convence-o daquilo em que ele está inclinado a acreditar.

A Razão Não é Infalível.—Você sabe que dizem que o Papa é infalível—isto é, que ele não pode estar enganado e que toda decisão que ele toma deve ser [p 62] uma decisão certa. Isso é o que muitas pessoas alegam por Razão—que é infalível. Mas você pode ver imediatamente que, se duas pessoas igualmente inteligentes e igualmente boas são intensamente convencidas pela Razão de duas coisas exatamente opostas uma à outra—como, por exemplo, de um lado que uma certa guerra é dever de uma nação, e, por outro lado, que essa mesma guerra é um crime—a Razão para esses dois homens bons não pode ser infalível: um ou outro, se não ambos, deve estar errado. Portanto, visto que todos os homens, que não são idiotas ou loucos, são dotados desse mesmo poder de raciocínio, podemos concluir que a Razão não é infalível e que conclusões certas e fixas nem sempre são conclusões corretas, mas que tudo depende da noção a partir da qual o raciocínio começa.

Anarquistas.—Todos nós ficamos tristes pelo fato de que existem certos homens e mulheres no mundo que acreditam que é seu único dever tirar a vida de um membro da família real ou de um governante. Essas pessoas são chamadas de anarquistas. Embora os crimes deles causem pavor a todos nós, não é difícil ver a cadeia de raciocínio pela qual eles estão fazendo o que é certo aos seus próprios olhos, por mais errado que seja aos nossos. A palavra anarquista significa sem regra; e o objetivo dos anarquistas é abolir as leis e o governo nacional, seja do reino ou da república. Por quê? Você pergunta. Porque, dizem eles, todo homem é dotado de Razão; logo, todo homem é capaz de governar a si mesmo; portanto, nenhum homem deve ter um governante colocado sobre ele. Você consegue ver, por este exemplo, como um erro de pensamento pode levar aos crimes mais aterrorizantes.

Razão em Matemática.—Em nenhum momento as operações da Razão são mais prazerosas e perfeitas [p 63] do que na matemática. Aqui, os homens não começam a raciocinar com uma noção que os faz inclinar-se para esse lado ou para aquele. Aos poucos, a verdade absoluta se desdobra. Somos feitos para que a verdade, absoluta e certa, seja uma alegria perfeita para nós; e essa é a alegria que a matemática proporciona. Além disso, há uma grande alegria em aguardar, por assim dizer, e observar nosso próprio pensamento resolver um problema complexo. Há um registro de um matemático que foi dormir perplexo com um problema, com lápis e papel a seu lado. Ele dormiu, como deveria, profundamente a noite toda; mas eis que, ao lado dele, quando ele acordou, estava o problema resolvido da maneira mais clara. Provavelmente ele fez isso durante o sono.

A Razão Deve Ser Usada para um Bom Propósito.—Existem poucas coisas que provam a incrível grandeza e poder do homem tanto quanto esse dom da Razão; mas, como todos os presentes, a Razão, também deve ser usada para um verdadeiro objetivo, mas não deve ser seguida como um guia infalível. Podemos argumentar sobre coisas dignas e sobre coisas indignas. Uma pessoa mal-humorada passa por um longo caminho de raciocínio para provar a si mesma que foi ferida e tem o direito de estar zangada; o ladrão também, para executar seus desígnios; o mesmo acontece com um garoto travesso e rancoroso, que faz uma brincadeira tola com alguém. A Razão é tão absolutamente serva de cada um de nós que podemos usá-la para o que quisermos, nobre ou deplorável, grande ou pequeno. Lembrando que temos um grande presente, vamos usá-lo para pensar em grandes assuntos; e então, algum dia, a oportunidade de pensar em algum grande serviço para o mundo será colocada em nosso caminho. A chance de fazer algo quase sempre chega quando estamos prontos para isso.

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A Razão Elabora uma Noção Recebida pela Vontade Mas Não a Inicia.—“Foi a chaleira que começou,” diz Dickens em um de seus contos de Natal. Agora, o ponto a ser lembrado é que a Razão não inicia. A Razão continua, e a Razão termina, mas a Razão não começa. O começo, o que coloca a Razão em movimento, é quase sempre uma noção admitida pelo Primeiro-Ministro, Vontade. Uma vez admitida, a Razão aproveita a noção e a trabalha, e sai no final de seus processos um produto concluído. Veja você que isso muda a responsabilidade de nossas conclusões da Razão, que as elabora, de volta para a Vontade, que aceita a primeira noção.

Se a Vontade é persuadida a deixar passar uma noção porque é antiga, ou porque é nova; porque um homem que ela respeita pensa isso ou aquilo, ou porque um homem que ela não gosta pensa outra coisa; porque é do seu interesse pensar assim ou assado, ou porque é para o seu deleite; ou porque mostra que ele é um sujeito inteligente, por ter essa noção antes do resto do mundo; se, por qualquer uma dessas causas ou por centenas de outras, boas ou más, a Vontade é induzida a admitir uma noção, ela pode contar com antecedência que sua Razão lhe provará: porque o trabalho da Razão é provar para nós o que pensamos ser correto, e não nos conduzir a conclusões que são certas em si mesmas.

Você pode ver, portanto, que a Razão não tem o direito de dar a última palavra na maioria dos assuntos; porque falar a primeira palavra não pertence a ela, e a última palavra apenas segue a liderança da primeira. Sua chegada ao destino certo não depende da sua escolha de uma boa estrada ou da sua jornada em um bom ritmo, mas inteiramente da sua partida na direção certa.

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Porque Existem Diferentes Escolas de Filosofia.—Pensando nessas coisas e sabendo que os homens não conseguem deixar de confiar na Razão como alguém que confia em um advogado hábil e instruído, você não ficará surpreso ao saber que filósofos, homens bons e sinceros, provaram, conclusivamente para si mesmos, que não há Deus. Outros provam que não há nada no homem que você não possa ver ou investigar com instrumentos; em outras palavras, eles pensam que não há nada além de matéria no universo e que não há espírito de Deus ou do homem. Isso é menos surpreendente, embora talvez não seja mais verdadeiro, do que a conclusão que outra escola de filósofos elaborou; estes foram capazes de provar para si mesmos que não há cadeiras, nem mesas, nem árvores, nem pessoas; mas que o que pensamos ver é realmente o pensamento dessas coisas concebidas em nossas mentes.

Prática no Raciocínio.—Talvez seja melhor usarmos esse maravilhoso poder de raciocínio, comumente chamado de Razão, dando bastante trabalho a ela, perguntando a nós mesmos qual é a causa disso e daquilo; por que pessoas e animais fazem certas coisas? A razão que não é trabalhada cresce lentamente; e há pessoas que nunca pensam sobre nem fazem perguntas sobre o que vêem.

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CAPÍTULO VII

OS LORDES DO TESOURO, OS DESEJOS (Parte I.)

A Mente deve ser Alimentada.—Consideramos os Lordes do Tesouro, os Desejos, depois do Intelecto, porque o ofício deles é fazer pela Mente praticamente o que os Apetites fazem pelo Corpo. É tão necessário que a Mente seja alimentada, cresça e produza, quanto que essas coisas aconteçam ao Corpo; e, assim como o Corpo nunca se daria ao trabalho de se alimentar se nunca passasse fome, a Mente não aceitaria o que precisava, se também não tivesse certos Desejos a satisfazer. Estes juntam os recursos, por assim dizer, para a Mente, e então, podemos nos divertir chamando-os de Lordes do Tesouro.

O Desejo de Aprovação.—Você já prestou atenção em um bebê com seus blocos? Quando ele consegue colocar um de pé, ele se vira para a mãe com um sorriso. A pequena criatura não é feliz a menos que sua mãe ou enfermeira o aprovem. Quando ele engatinha até a janela, segura-se pelo pé da cadeira e diz ‘Ma-mãe, pa-pai,’ ele quer um sorriso por todas essas coisas, e se a babá parecer zangada e dizer ‘Malcriado!’ o rostinho cairá e as lágrimas aparecerão. Ninguém ensinou o bebê a querer que seus amigos ficassem satisfeitos com ele; nasce nele e é apenas uma parte dele como ser humano, uma pequena Alma Humana.

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Esse Desejo de Aprovação o ajuda mais tarde a realizar uma soma, a subir uma colina, a trazer para casa um bom relatório da escola; e o tempo todo ele traz cereais para o moinho, conhecimento para a mente, porque as pessoas cuja Aprovação vale a pena ter, se preocupam com nosso aprendizado e conhecimento, que vencemos nossa ociosidade e adquirimos hábitos de trabalho constante, para que nossas mentes possam ser adequadamente nutridas todos os dias como são nossos corpos.

O Demônio da Vaidade.—Este Desejo legítimo e útil de Aprovação tem seus Demônios; um deles é conhecido como Vaidade. Não podemos viver e ser felizes sem a Aprovação, mas alguns meninos e meninas, homens e mulheres, escolhem ter a aprovação dos inúteis e tolos, em vez dos sábios e bons. Alguns garotos preferem conversar e se exibir de maneira a fazer o estábulo rir, do que trabalhar e brincar de maneira a ganhar a aprovação das pessoas mais sábias do que eles. As pessoas podem ser vaidosas e se mostrar sobre quase tudo—suas ricas relações, as festas que frequentam, suas roupas, seu canivete, sua esperteza. Mas quando as pessoas se exibem, como um pavão espalhando suas plumas, é sempre para que alguém cuja boa opinião não valha a pena ter, possa pensar melhor delas. Bons meninos e meninas, bons homens e mulheres, pensam bem de nós apenas por fazermos o nosso melhor; sabemos disso e não pensamos em nos exibir diante deles. O estúpido não quer a aprovação de ninguém; o vaidoso quer a aprovação dos indignos.

Fama e Infâmia.—Outro perigo é que uma pessoa pode permitir que o desejo de aprovação se aposse tanto dela que ela não pense em mais nada. Todas as suas ações, boas ou más, são realizadas para ganhar a atenção de outras pessoas. Ela prefere que você fale mal dela do que que você [p 68] não fale dela. Acredita-se que roubos, assassinatos, homicídios ocorram às vezes por mero motivo de infâmia, assim como atos de heroísmo podem ocorrer por causa da fama. Tanto a infâmia quanto a fama significam ser falados sobre e pensados sobre por um grande número de pessoas, e se alguém permitir que seu Desejo de Aprovação natural o possua de forma que esteja sempre imaginando o que as pessoas pensam dele e dizem sobre ele, ele perde o que é muito mais precioso do que o respeito dos outros—o respeito próprio, que só se pode ter quando os desejos, motivos e poderes de Alma Humana estão devidamente equilibrados.

O Desejo de Excelência.—Outro desejo que serve para alimentar a mente é o de Excelência. Se estamos aprendendo a andar de skate, não temos paz até andarmos de skate tão bem como um garoto que conhecemos que aprendeu no inverno passado; então queremos superá-lo; depois, queremos andar de skate tão bem quanto um outro skatista melhor; e então, superá-lo; e assim por diante, e quando vamos dormir à noite, sonhamos com o dia em que andaremos de skate melhor do que qualquer um na vizinhança; pensamos o quanto seria glorioso ser o melhor skatista do mundo. Parece que alguns animais, cavalos pelo menos, têm esse Desejo. Você não vê como outro cavalo, antecipadamente, envolve o seu em sua impetuosidade? É tão bom quanto o contato da espora para acelerar seu ritmo. E é exatamente isso que esse Desejo de Excelência faz por nós; nos estimula a esforçar-nos quando somos preguiçosos. Se outro garoto le, escolhemos ler mais. Se ele trabalha em suas lições, nós trabalhamos mais; e assim, de uma maneira ou de outra, a Mente é sustentada pela comida de que precisa.

Prêmios e Lugares.—A Emulação, ou o Desejo de Superar, tem, assim como o Desejo de Aprovação, dois [p 69] Demônios. Um é que as pessoas se interessam tanto pelo Desejo de estar à frente de outras que não têm tempo para pensar em mais nada; eles não se importam com o que aprendem, isso não lhes interessa; eles só querem as notas, ou prêmios, a posição na classe, e assim por diante; e acontece que sua Mente às vezes fica tão faminta por querer ser o garoto que sai primeiro, que nunca depois recupera seu apetite. História, Literatura, Ciência deixam de interessar e deixam de ser procuradas. Todo o objetivo da vida é chegar à frente de outra pessoa. Dessa maneira, a Emulação, que nos foi dada, podemos acreditar, pelo alimento de nossas Mentes e pelo desenvolvimento de nossos Corpos, derrota seus próprios fins, e é satisfeita apenas em se destacar.

Excelência em Coisas Indignas.—Podemos errar se formos indevidamente emulosos sobre coisas que são certas e boas por si mesmas; mas também, a Emulação, como muitos outros subordinados, pode se agarrar a todo o domínio de Alma Humana através de coisas ilegais e indignas. Nos velhos tempos de se beber muito, a excelência que os homens desejavam era se destacar em seu poder de beber grandes quantidades de vinho em uma sessão; ser um “homem de três garrafas” era uma distinção.

Distinções tão pouco dignas quanto isso ainda são procuradas por meninos e meninas, homens e mulheres. Cada um de nós deve fazer o mesmo para refletir sobre o assunto e ver se estamos entregando nossas vidas ao Desejo de Excelência em uma busca indigna.

O Desejo de Riqueza.—O Desejo de Riqueza é outro Desejo que todo mundo tem, mais ou menos, e que faz um trabalho útil para nos deixar ansiosos por adquirir coisas úteis e necessárias para nossas vidas, seja para nossos Corpos ou Mentes. Esse mesmo Desejo [p 70] move um menino pequeno para colecionar canivetes, botões, barbantes e bolas de gude, e move um homem rico para reunir uma preciosa coleção de belas obras de arte, e outro para se tornar um milionário, embora ele possa não querer gastar seu dinheiro.

Demônio do Egoísmo.—Novamente, dois Demônios esperam por esse Desejo natural; um é o Demônio do Egoísmo: uma vez que um garoto ou um homem se deixa abater pelo desejo de obter e manter, sejam selos postais ou gravuras, ornamentos ou dinheiro, que ele pensa em nada mais—que isso, de obter e manter, torna-se o Desejo dominante de sua vida—simplesmente ele não pode se separar daquilo que se tornou seu tesouro; ele não consegue ser generoso, e sua mente está tão preocupada que ele não tem tempo para ser gentil. Seu coração pensa somente em posses para si mesmo, e ele se torna uma pessoa egoísta. Quando o Desejo de Riqueza preenche toda a vida, torna-se Avareza. A pessoa que está sempre buscando mais riqueza é avarenta; e ele pode chegar a tal ponto que não pode se separar de nenhuma de suas riquezas, mesmo para suas próprias necessidades corporais; esse homem é um avarento. Por outro lado, aquele que se esforça para adquirir como parte de sua vida, e não a parte principal, pode obter por si mesmo os meios de ser generoso e útil a outras pessoas.

Riqueza sem valor.—Outro risco é que alguém possa querer adquirir coisas sem valor real. Em uma encantadora história francesa, um casal nobre é apresentado, e passa a vida em viagens rápidas. Uma hora eles correm para Palermo—depois, para Moscou—novamente para Tóquio; e para que você supõe? Porque ouvem dizer que neste país ou naquele, existe uma caixa de fósforos que ainda não faz parte de sua coleção—uma caixa de fósforos coberta com papel azul ou [p 71] marrom ou amarelo—uma caixa de fósforos de três polegadas de comprimento ou duas e um quarto. Eles não param para perguntar qual pode ser a distinção da caixinha feia, mas difere um pouco do resto; portanto, a qualquer custo e tempo, eles se apressam em possuí-la. O romancista ri da mania que as pessoas têm por coleções de qualquer tipo, dignas ou indignas; e essa mania vem do Desejo natural de posses implantado em Alma Humana. Mas cabe a nós que nossas posses sejam dignas. Comecemos cedo a coletar uma boa biblioteca de livros que sempre valorizaremos, de fotografias das obras dos grandes mestres; mesmo de selos postais, se nos esforçarmos para nos interessar pelos selos—pergunte-se, por exemplo, por que os atuais selos alemães exibem a figura da Germânia. Nenhuma coleção que não tenha interesse pela mente vale a pena possuir. Siga essa regra e, quando crescer, não pensará que vale a pena possuir uma placa de prata por si mesma, mas por sua antiguidade, suas associações ou pela beleza de seus desenhos.

O Desejo do Poder.—Outro Desejo que se agita em todos os seres humanos é o Desejo do Poder. Todas as crianças no jardim da infância têm esse desejo mais ou menos, mas aquele que tem mais dele, domina o resto. Eles jogam seus jogos, executam suas tarefas, permitem que ele domine sobre eles o dia todo. As pessoas que mais amam o poder obtêm poder; mas se forem bem-humorados e gentis; prestativos e generosos, inteligentes e alegres, eles usam seu poder para manter o resto feliz, interessado e entretido. O poder é uma coisa boa quando nos oferece muitas chances de servir; é ruim quando tudo o que importa é governar.

Ambição, o Desejo do Poder, não é exatamente a [p 72] mesma coisa que Emulação, o Desejo de se destacar. O garoto que emula se contenta em ser o primeiro; o garoto ambicioso deseja liderar o resto. Eu acho que o garoto ambicioso é mais útil no mundo do que o emulador, porque, se ele quer liderar os outros, ele deve se fazer digno de assumir a liderança. Ele deve ser o melhor, seja ele capitão da escola ou dos onze jogadores de críquete. Mas lembre-se de que ‘o orgulho vem antes da queda.’ Se ele se deixar levar por liderar, tome cuidado! Outros se preocupam em seguir a liderança dos obedientes e dedicados, mas não os orgulhosos e satisfeitos. O Desejo de Poder, como cada um dos outros Desejos, pode arruinar uma vida que lhe é permitida dominar. Uma vez que o homem ou o menino não pensem em nada além de assumir a liderança, ele deixará de se importar com objetos dignos ou indignos. Ele logo liderará seus companheiros em tumultos e desordens, como se fossem nobres esforços por uma boa causa. Muitas vidas sofreram naufrágio na rocha da Ambição.

‘Gerenciando’ as pessoas.—Há também um perigo especial no amor ao poder—um perigo para os outros e não para nós mesmos. Se estamos empenhados em assumir a liderança, não permitimos que os outros joguem de forma justa ou com uma chance justa. Roubamos nossos companheiros de uma parte de suas vidas, daquela parcela justa de poder que lhes pertence. Nós crescemos fortes às suas custas, e eles se tornam fracos em proporção à medida que nos aperfeiçoamos. Poucos personagens são mais ignóbeis do que aqueles que estão sempre tentando gerenciar os outros, sempre manobrando para obter poder em suas próprias mãos. A melhor maneira de ficar vigilante contra esse mal é esperar sempre até que tenhamos a ‘grandeza imposta sobre nós.’ Não devemos assumir a liderança, mas devemos esperar até que ela nos seja dada e, em então, devemos liderar pelo progresso e ajuda aos outros, e não a nossa.

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CAPÍTULO VIII

OS LORDES DO TESOURO, OS DESEJOS (Parte II.)

O Desejo de Sociedade.—Outro Desejo comum a todas as pessoas é o Desejo de estar junto a alguém. Todos nós queremos companhia, vizinhos, amigos, conhecidos. As crianças adoram brincar com outras crianças pequenas na rua; você vê meia dúzia de criaturinhas com seus dois anos de idade brincando juntas, conversando em sua língua de bebê e gostando muito uma da outra. A grande alegria de ir à escola é estar com outros meninos e meninas da mesma idade e posição. Os rapazes têm seus clubes, homens e mulheres têm festas; homens com pouca ou nenhuma educação gostam de se reunir, mesmo se raramente falam com outros, e pessoas de certas nações selvagens se sentam em círculos silenciosos toda hora. A mesma razão age em todos eles; todos têm o Desejo de Sociedade. Queremos ver o rosto um do outro, ouvir a voz um do outro, dar prazer e receber prazer um ao outro.

Aprendemos Com a Sociedade.—Dessa forma aprendemos, pois a maioria das pessoas têm coisas para dizer que é bom ouvir; e devemos ter algo a produzir do nosso próprio armazém de conhecimento que interessará a outros—algo [p 74] que vimos ou ouvimos, lemos ou pensamos. Quando nossa falecida amada Rainha era jovem, muitas pessoas interessantes foram apresentadas a ela para que ela pudesse conversar com elas—grandes viajantes, homens da ciência, inventores, soldados, marinheiros. Ela já havia lido e pensado sobre o assunto em que cada um estava interessado, e assim pôde conversar com eles com prazer e lucro, tanto para si quanto para eles. Se você conhece alguma coisa de botânica, um botânico quer conversar com você sobre o assunto dele; se você conhece algo de história, um historiador fará o mesmo. Se você não souber nada sobre o assunto dele, poderá estar em companhia do maior poeta, aventureiro ou pintor, e conseguirá falar apenas sobre o clima. Isso é bem compreendido entre pessoas da realeza e outras de grandes importância, que, dizem, obtêm a maior parte de seu conhecimento em primeira mão. Eles aprendem sobre as recentes descobertas em astronomia do astrônomo que está envolvido com eles, sobre a evolução aprendem com alguém como Darwin e assim por diante. Às vezes, somos inclinados a invejar suas grandes oportunidades de obter informações em primeira mão; mas lembre-se de que lucrar com o discurso das pessoas mais capazes implica uma dupla preparação que os príncipes e seus semelhantes adquirem a um custo de trabalho diligente que surpreenderia a maioria dos jovens. Eles trazem duas coisas como parte da conversa—mentes cultivadas e inteligentes e um conhecimento bastante completo de uma grande variedade de assuntos. Com o mesmo equipamento, nós também devemos aproveitar ao máximo nossas oportunidades de conversação, e parece-me que as pessoas sempre conseguem o que elas estão preparadas para receber. Não tenho certeza de que essa seja uma regra da providência de Deus, mas, até onde posso deduzir, ela é válida. De qualquer forma, vale a pena estar preparado para o melhor das conversas, assim como em outras coisas, e então esse [p 75] Desejo natural tornará o seu dever, coletar alimento para a mente.

Mas não é apenas dos melhores e mais capazes que podemos aprender. Eu já vi pessoas mal educadas em uma sala, e mesmo à mesa, que não tinham nada a dizer porque não achavam que valesse a pena conversar com seu vizinho, enquanto que, se ao menos pudessem falar com Fulano, a quem assistiam à distância, como suas palavras fluiriam! Isso não é apenas antipático e cruel, mas é tolo, e uma fonte de perda para si. Talvez não haja alguém que não tenha um pouco de conhecimento ou experiência, ou que não tenha tido algum pensamento próprio. Uma boa história é contada sobre o Sr. Walter Scott, ele estava viajando de Londres para Edimburgo por carruagem, e dividindo o assento com ele havia um homem que não falava. Ele experimentou falar sobre o clima, as colheitas, a política, os livros, todos os assuntos em que pôde pensar—e podemos ter certeza de que eram muitos. Por fim, em desespero, ele se virou com: “Bem, sobre o que você pode conversar, senhor?” “Couro trabalhado,” disse o homem; e acrescentou Sr. Walter, “tivemos uma das conversas mais interessantes que me lembro.” Todo mundo tem o seu ‘couro trabalhado’ para conversar, se tivermos o dom de chegarmos ao assunto.

Perigos que Acompanham o Amor à Sociedade.—Dois perigos atendem ao amor à sociedade: um pertence especialmente, como eu disse antes, à pessoa vaidosa que, a todo custo, quer ser lisonjeada e, portanto, escolhe seus amigos entre os que são inferiores a ela e quem fará de conta que a admira e faz muito dela.

O outro perigo presente no amor à sociedade é o que pertence a cada um de nossos desejos naturais. É o perigo de que esse desejo possa tomar posse de toda [p 76] a nossa vida e dominar Alma Humana. ‘Não há mal nisso,’ diz a mulher na porta da casa de campo, fofocando com o vizinho; e é o que diz a garota, que se arrisca com suas amigas pela manhã, joga tênis à tarde e sai à noite—na verdade, fica o dia inteiro conversando aqui e ali, sem nada a adicionar à vida. Há aqueles que estão tão ocupados correndo de um lado para outro, vendo e sendo vistos, conversando e sendo conversados, que eles são uns verdadeiros mendigos no que diz respeito a seus próprios pensamentos e recursos. Este é um tipo de naufrágio da vida que as pessoas não lamentam como fazem quando um homem bebe ou cai em algum outro vício flagrante; mas o naufrágio é talvez igualmente completo, embora não seja tão desagradável para os amigos da pessoa.

Sociedade, um Banquete no Qual Todos Servem.—A sociedade, mesmo sendo apenas um bate-papo entre dois ou três conhecidos, é um banquete para o qual cada pessoa deve trazer algo. Os jovens costumam achar isso difícil, porque acham que não têm nada a dizer, a menos que para uma ou duas pessoas com quem sejam íntimos. Que eles tomem conforto; a escuta inteligente é um prato muito bom para esta mesa e, além disso, um prato que todos apreciam. Há mais pessoas que podem falar do que quem pode ouvir. Ouso dizer que você já deve ter se divertido assistindo grupos de pessoas conversando ao perceber que todos estão falando ao mesmo tempo e ninguém escutando. Ouvir com toda a mente é um ato de delicada cortesia, que mostra o melhor das pessoas, até as sem graça.

Pessoas de pouca cultura podem conversar apenas com seu próprio tipo ou com seus próprios ‘companheiros.’ Homens que cuidam de cavalos não têm nada a dizer, exceto a homens que cuidam de cavalos; meninos que tomam conta de cães, exceto para meninos que também tomam conta de cães; meninos de escola [p 77] para meninos de escola; meninas de escola para meninas de escola; soldados para soldados e marinheiros para marinheiros. Isso é bastante natural, pois, diz o provérbio: ‘pássaros de uma pluma voam juntos’; mas não é sensato, pois escolhermos viver em nosso próprio cercado ao invés de assumir nossa parte nos interesses do grande mundo.

O Desejo de Conhecimento.—Deixei até o final o Desejo que realmente é para a mente, assim como a Fome é para o Corpo, isto é, o Desejo de Conhecimento. Todo mundo deseja o saber, mas algumas pessoas desejam saber coisas dignas, e outras, coisas indignas. O Desejo de conhecimento indigno é comumente chamado de Curiosidade. ‘Onde você comprou isso?’ ‘Quanto isso custou?’ ‘O que ela disse?’ ‘Quem estava lá?’ ‘Por que eles não estão se dando bem?’ e assim por diante, são o tipo de perguntas que a Curiosidade faz. Parece inofensivo o suficiente nos satisfazermos com fragmentos de notícias sobre essa pessoa notável ou a outra, um assassino ou milionário, um estadista ou um soldado, uma grande dama ou uma dançarina—a curiosidade está aberta para buscar notícias sobre alguma ou todas estas pessoas. A curiosidade também está ansiosa para saber e contar as últimas notícias sobre telegrafia sem fio, carros a motor e outras coisas. O Desejo real, e não espúrio, de Conhecimento levaria uma pessoa das maravilhas da telegrafia sem fio a um estudo sério da eletricidade; mas a Curiosidade está satisfeita em saber algo sobre um assunto, e não em saber de verdade sobre ele.

A Curiosidade e o Desejo de Conhecimento.—Assim como doces e tortas satisfazem a Fome, enquanto eles fazem muito pouco para sustentar a vida, a Curiosidade satisfaz a mente com os detalhes pequenos que reúne, e a pessoa que se deixa curiosa não tem Desejo de conhecimento real. É um infortúnio lamentável, porque [p 78] todo ser humano tem um Desejo natural de explorar aqueles reinos abertos ao intelecto dos quais eu já falei. Com o conhecimento desses grandes assuntos—História, Literatura, Natureza, Ciência, Arte—a Mente se alimenta e cresce. Ela assimila o conhecimento como o corpo assimila a comida, e a pessoa se torna o que é chamado de magnânimo, ou seja, uma pessoa de grande mente, interesses amplos, incapaz de se ocupar muito de assuntos mesquinhos e pessoais. Que pena perder de vista essa possibilidade em prol de fragmentos miseráveis ​​de informações sobre pessoas e coisas que têm pouca conexão entre si e pouca conexão conosco!

Emulação e Amor ao Conhecimento.—O Amor ao Conhecimento, o mais nobre dos nossos desejos, corre o risco de ser expulso e privado de sua participação devida na ordenação de Alma Humana, se algum dos outros Desejos que eu citei obtiver a vantagem. Este é especialmente o caso quando a Emulação toma o lugar do Amor ao Conhecimento. As pessoas dedicam-se ao Conhecimento, à Matemática, à Poesia, à História, de maneira febril e ansiosa, não pelo amor a essas coisas, mas pelo bem do prêmio ou do lugar, alguma recompensa concedida à Emulação. Mas o Conhecimento tem seus próprios prêmios, e estes ele reserva para seus amantes. É apenas na medida em que o Conhecimento é amado por nós e nos deleita por si mesmo que ele nos produz alegria e contentamento ao longo da vida. Quem se deleita com ele, não por se exibir, e não por se destacar dos outros, mas apenas porque ele é tão digno de ser amado, não pode ser infeliz. Esta pessoa diz: ‘Para mim, minha mente é um reino’—e, por mais insatisfatórias que as coisas sejam em sua vida exterior, ela se retira para esse reino e fica entretida e encantada com as coisas [p 79] curiosas, belas e maravilhosas que ela armazenou.

‘Notas’ e Conhecimento.—Muitos meninos e meninas gostam de ir à escola, não pelo que aprendem lá, mas pelas notas que lhes dão um lugar acima de alguns colegas de classe. Eles devem entender que notas e posições e o poder de passar nos exames é só o que eles recebem. Como o Sr. Ruskin disse: “Eles estudam intensamente antes de um exame para passar, e não para saber; eles passam; e eles não sabem.” O Conhecimento, como uma alegria permanente, vem apenas para aqueles que o amam por ele mesmo, e não para aqueles que o usam para avançar na escola ou na vida.

Todas as Pessoas Têm Poderes Mentais.—Há muito mais a ser dito sobre a Câmara da Mente, mas talvez isso seja suficiente para o presente. Provavelmente, ao ouvir o Intelecto, a Imaginação, o Senso de Beleza, os Desejos e o resto, você percebe um sentimento de interesse e surpresa ao reconhecer que todas essas coisas fazem parte de você, você mesmo. Ainda mais interessante e surpreendente é saber que esses incríveis poderes e possibilidades pertencem, mais ou menos, a toda pequena criança que encontramos na rua. Digo, mais ou menos, porque quanto maiores os poderes e as qualidades da mente possuídos por nossos pais, avós e ancestrais longínquos, provavelmente maiores serão os nossos, mas de modo algum é com certeza. Mas, exceto no triste caso dos idiotas, nunca houve uma criança nascida no mundo, de pais civilizados ou selvagens, que não fora presenteada com todas essas grandes possibilidades em algum grau. Que razão maravilhosa temos aqui para fazer o que quer que esteja a nosso alcance, para dar a cada pessoa no mundo a chance de ser [p 80] tudo o que ela veio ao mundo fornecida e planejada para ser!

A Ordem de Nossos Pensamentos.—Não precisamos carregar esse conhecimento sobre nós mesmos como um pacote pesado nas costas. Quando alguém sabe sobre uma coisa, aquilo vem à mente quando é procurado, e não é um fardo a ser pensado o tempo todo. Você nem sempre pensa: ‘Se eu colocar meu dedo no fogo, ele será queimado,’ mas você sabe que isso acontecerá, e por isso não faz esta coisa tola. Da mesma forma, se você conhece o efeito de se preocupar apenas com notas escolares, esforça-se por despertar sua mente e interesse em seu trabalho pela sua própria importância; e então, longe de ser um fardo, esse conhecimento fará com que o trabalho se torne prazer. O palácio de um rei não é mais problema para ele do que o chalé de um trabalhador, embora o rei deva conhecer todos os tesouros que seu palácio contém e como eles devem ser salvaguardados, usados ​​e desfrutados; mas os arranjos necessários são feitos, e tudo continua sem mais pensar de sua parte. O mesmo acontece conosco nesta questão de ordenar nossos pensamentos, pois é nisso que se resume. Saber que devemos ordenar nossos pensamentos; que nós podemos fazer isso; e como e quando interferir na carreira desses pensamentos não é o todo, mas acredito que é metade da batalha.

[p 81]

PARTE III

A CÂMARA DO CORAÇÃO

OS LORDES DO CORAÇÃO: I. AMOR

CAPÍTULO I

OS CAMINHOS DO AMOR

Os Lordes da Câmara.—Assim como o Reino de Alma Humana vem ao mundo com Governantes na Câmara da Mente, que também são poderes de deleite, ele também vem com Governantes na Câmara do Coração, cujo ministério é lhe trazer felicidade; e, como nunca ninguém esteve feliz por vontade própria, fazê-lo trazer felicidade aos outros. Os dois grandes Lordes e representantes na Câmara do Coração são Amor e Justiça.

Amor.—O Amor, como um rei, tem seus nobres representantes—Piedade, Benevolência, Simpatia, Bondade, Generosidade, Gratidão, Coragem, Lealdade, Humildade e Alegria. Você já jogou uma pedra na água e observou os círculos espalharem-se? De fato, eles espalham-se até as margens do lago, lagoa ou mar em que você jogou a pedra; e mais, eles afetam a terra do outro lado. Mas estes círculos distantes tornam-se tão fracos que são imperceptíveis, enquanto os mais próximos do ponto em que você jogou a pedra estão claramente marcados. O mesmo acontece com o nosso amor. É como se, em primeiro lugar, [p 82] nosso lar fosse a pedra lançada para mover nosso ser; e a partir desse ponto central o círculo de nosso amor se alarga até que abraça toda a humanidade. Ninguém, exceto nosso Senhor Jesus Cristo, sabia o quanto ele poderia amar, ou o quanto ele poderia fazer em nome do Amor; mas o soldado que entra no meio da luta para resgatar seu camarada, colocando em risco sua própria vida; a mãe que cuida de seu filho doente e daria sua vida muitas vezes para salvá-lo do sofrimento; a enfermeira que se dedica, corpo e alma, ao cuidar dos enfermos—estes sabem um pouco de quanto Amor há no coração humano.

Amores Falsos—O Amor Próprio.—Existem muitos amores falsos prontos para tomar posse da Câmara do nosso Coração e expulsar o ministro legítimo. Sabemos o que é ser exigente, egoísta e ciumento, com aqueles mais próximos, mesmo com nossas próprias mães, e chamamos isso de amor. E é; mas é o Amor Próprio, a forma mais pobre e mais baixa de Amor; mas é também um Amor que é lícito e necessário, ou não cuidaríamos de nossas próprias vidas, propriedades ou interesses. Não podemos viver sem o Amor Próprio, ou acabamos por nos tornar um fardo e problema para outras pessoas; mas a pessoa que apenas ama a si mesma, cuida apenas ou principalmente de seus próprios interesses, prazeres e lucros, é considerada pelo mundo como uma pessoa egoísta, sua mente está tão cheia de seus próprios sentimentos e assuntos que tem pouco tempo para pensar nos assuntos de outras pessoas. Ela dá pouco amor e merece receber o mesmo pouco; mas o triste é que talvez esta pessoa tenha uma mãe ou irmã, uma esposa ou um amigo, que derrama sobre ela um grande amor e sofre em suas mãos. É um consolo que aquele que ama nesse caso, e não aquele que recebe o [p 83] amor sem nada em troca, é realmente o mais feliz; pois são eles os que amam, e não aqueles que são amados, que vivem todos os dias no reino de Deus. Existe um tipo de egoísmo não tão fácil de descobrir como o da pessoa que está sempre cuidando de seus próprios interesses e prazeres, isto é, o egoísmo da pessoa que está continuamente reivindicando aqueles que a amam. Ela quer o tempo, os pensamentos, toda a atenção, a companhia; e fica irritada, ofendida, ciumenta, se não recebe a atenção e o carinho que exige. Essa pessoa pensa que é porque ela ama esse ou aquele amigo com tanto carinho, mas é, na verdade, porque ela se ama que nem mãe nem amigo podem dar a ela todo o amor e consideração que ela parece merecer.

Flertar.—Existe outro falso Amor cuja satisfação reside em beijar, acariciar, tocar, estar sempre com a pessoa amada no momento. Digo, no momento, porque, embora essas expressões possam pertencer, na medida certa e no momento certo, ao Amor verdadeiro, elas não constituem em si mesmas o Amor ou necessariamente pertencem a ele, e algumas pessoas passam uma vida toda flertando, hora com uma pessoa, hora com outra, na indulgência desse afeto espúrio, e sim animal, que não é sustentado por nenhum dos sinais do verdadeiro Amor.

O Amor é uma pérola preciosa presente em todos os corações; mas, como muitas pessoas apresentam jóias falsas a si mesmas e a seus amigos, é bom que saibamos como reconhecer esta jóia quando a vemos e, sobretudo, quando a sentimos ou pensamos que a sentimos.

O Amor Deleita-se com a Bondade do Outro.—O amor deleita-se com a pessoa amada. Agora, é natural que nos deleitemos com o que é bom; os [p 84] corações dos mais selvagens e degradados foram muitas vezes conquistados dessa maneira. Eles viram vidas de bondade, altruísmo e beleza vividas diante deles dia após dia; eles assistiram a essas vidas com prazer porque ‘é de sua natureza,’ e, finalmente, deram amor e reverência de coração à pessoa cuja bondade tenha sido sua alegria. Não é apenas por essa pessoa ter sido boa para eles; talvez eles nunca tiveram uma palavra ou um olhar de volta para eles, mas eles assistiram, ponderaram e amaram. Algum dia, talvez, conheceremos a história dos heróis soldados, dos heróis missionários e dos santos que fizeram o bem apenas porque eram bons. No momento, sabemos apenas sobre alguns aqui e ali,—São Francisco de Assis, Elizabeth Fry, General Gordon; mas, sempre que descobrimos que pessoas boas foram criadas e sobreviveram a degradação, em países selvagens ou civilizados, podemos ter certeza de que é porque alguém viveu uma vida abençoada diante de seus olhos. Digo, portanto, que o Amor se deleita antes de tudo, na bondade da pessoa amada e não faria, por nenhum preço, seu amigo menos amável, menos obediente, menos prestativo. Influenciar seu amigo em caminhos indignos seria para o Amor, como queimar seu próprio teto sobre a cabeça.

Procura a Felicidade de seu Amigo.—Novamente, o amor busca a felicidade do amado e evita causar desconforto ao amigo por temperamentos irritantes ou mal-humorados, ciúmes ou desconfiança.

Procura ser Digno.—O amor procura ser digno de seu amigo; e como a bondade de seu amigo é seu deleite, ele também crescerá em bondade para o deleite de seu amigo.

Deseja Servir.—Mais uma vez, o Amor deseja [p 85] dar e servir; os presentes e o serviço variam com a idade e a posição dos amigos; a criança trará o presente da obediência, os pais talvez tenham que oferecer o serviço de repreensão, mas o pensamento do serviço está sempre presente no Amor. “Amor não em palavras, nem língua,” disse o Apóstolo, “mas em obras e em verdade”; isto é, talvez, “Não se contente com a mera expressão de amor, seja em palavras ou carícias, mas mostre seu amor em serviço e em confiança”; pois o amor sem confiança é extraviado ou indigno. O Amor tem outros sinais, sem dúvida, mas estes são verdadeiros para todo o Amor verdadeiro, seja entre pai e filho, amigo e amigo, casais ​​ou entre aqueles que trabalham pelos degradados e angustiados e entre aqueles por quem trabalham. Notemos a palavra degradação: é literalmente dar um passo atrás, renunciar, e esta é realmente uma palavra de esperança, pois, se é possível recuar um passo atrás, também é possível avançar um passo à frente. Todas as grandes possibilidades do Amor estão em todo coração humano e, para acessar a fonte, é preciso dar Amor.

Aversão.—Mas em todo o Reino da Alma Humana, nosso e de todas as outras pessoas, existem as possibilidades opostas, o que chamamos de demônios das qualidades. Todos somos capazes de ter carinho, de gostar, de ter simpatia, amor; e todos somos capazes de frieza, antipatia, aversão, ódio. A velha piada da revista Punch “Ele é um estranho; vamos jogar um tijolo nele,” nos dá a chave para grande parte de nossa frieza e aversão. É comum não gostarmos das pessoas porque não as conhecemos; e a maneira de superar essa aversão é pensar na pessoa que não gosta, tentar vê-la de seu próprio ponto de vista; assim encontraremos muito nela que despertará sentimentos amigáveis. O ódio é um sentimento incomum e [p 86] geralmente surge do ressentimento causado por lesões. Lembremos que a única petição na Oração do Senhor à qual uma condição está vinculada é: “Perdoe-nos nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam.” Não temos em nossas próprias forças o perdoar. É somente no Amor e na presença de Deus que podemos perdoar ferimentos e quando perdoamos, amamos.

Antes de pensarmos nas manifestações particulares do Amor, consideraremos as presenças abençoadas a quem chamamos de Representantes do Amor.

[p 87]

CAPÍTULO II

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A PIEDADE

Cavaleiros e Damas da Piedade.—Você já viu um bebê acariciar o rosto de sua babá para curar sua dor, ou acariciar seu gatinho e dizer ‘Pobrezinho!’ depois de pisar em seu rabo? Isso ocorre porque há um pouco de pena no coração de todo bebê. Para ser sincero, o bebê puxa o rabo do gatinho para ver o que vai acontecer, mas isso é somente por curiosidade. Convença-o da mágoa, e ele fica triste e diz ‘Pobrezinho!’ Uma garotinha voltará para casa e chorará sozinha por ter visto um cachorro de rua machucado; A Piedade brota em seus olhos e lágrimas. Conheço uma garotinha que nunca suportou a história de José no poço. Às vezes, meninos são dignos demais para chorar, e então fogem de uma história ou um relato ‘triste’ porque sabem o que aconteceria se ficassem para ouvir. Quando as pessoas ficam mais velhas, têm mais autocontrole para chorar; mas, quando vêem sofrimento, tristeza e dor, também sentem dor em seu coração, a dor da Piedade. O trabalho da Piedade em nossos corações parece ser um estímulo para ajudar aqueles que sofrem. Muitos corações afetuosos foram e estão tão consumidos com a Piedade, que dedicam a vida inteira para o conforto e a ajuda dos que sofrem. Você conhece a história daquele Cavaleiro da Piedade, [p 88] Padre Damião, que desistiu de tudo que era agradável nesta vida para levar o consolo de Deus às pobres almas daquela ilha de leprosos no Pacífico; ou, do Sr. E. J. Peck, ‘o homem mais solitário do reinado,’ que deixou sua família para testemunhar o caloroso amor de Deus aos habitantes do Ártico na Groenlândia. Na verdade, se pensamos muito sobre os que sofrem, até que o sofrimento deles se torne real para nós, ficamos com uma dor imensa em nossos corações, até que possamos ajudá-los. É por causa do pensar sobre o sofrimento, que o nobre exército de mártires, milhares e milhares deles em todo o mundo, renunciam a tudo na vida para que possam servir aos que sofrem. Às vezes, o Cavaleiro ou Dama da Piedade trabalha e vigia dia e noite um sofredor, e às vezes muitos compartilham o coração sofredor. Às vezes pessoas desconhecidas, e às vezes o próprio pai ou mãe, irmã ou filho, exigem e recebem o serviço de uma vida dedicada a eles. Muitos, numerosos, sofrem neste mundo ao mesmo tempo feliz e triste; mas, graças a Deus, muitos também recebem a piedade.

Piedade Inútil.—Eu disse que a ajuda é a função da Piedade; mas há pessoas que gostam de aproveitar o luxo da Piedade sem sofrer a verdadeira dor e dificuldade de ajudar. Elas dizem: ‘Que triste!’ e até derramam lágrimas por uma história triste, mas não se esforçam para fazer nada para ajudar o sofredor. De fato, no geral, preferem ter pena de pessoas imaginárias que não precisam de ajuda; o que lhes dá prazer é chorar por um conto triste em um livro ou peça. As lágrimas dessas pessoas, que ficam bastante satisfeitas com o fato de acharem que têm um ‘coração sensível’ são como a água de certas fontes, com alto nível de minerais, que têm a propriedade de [p 89] calcificar substâncias moles e suaves. Toda expressão de pena que não leva a um esforço para ajudar, acaba por formar um coração de pedra. Não há ninguém com tanta dificuldade em ajudar aos outros, como aqueles que se permitem o luxo da Piedade Inútil.

Autopiedade.—Existe outra classe de pessoas em que a Piedade é forte e sempre ativa; mas toda a piedade delas é dada a um objeto, e nem tristeza, dor, nem qualquer outra angústia fora desse objeto têm poder para movê-las. Essas são as pessoas que têm pena de si mesmas. Qualquer causa de piedade é suficiente e as consome. Elas sentem pena de si mesmas porque estão com dor de cabeça, porque têm dor de dente ou porque não têm cabelos dourados; porque são amáveis ​​e despercebidas, ou porque são esbeltas e desagradáveis; porque elas precisam acordar cedo ou porque o café da manhã não está a seu gosto; porque o irmão ou irmã tem alguma coisa que elas não têm, ou porque alguém cuja atenção desejam, não lhe dirige a palavra, ou, quando falam, dizem: ‘Apresse-se,’ ou ‘Sente-se direito,’ ou algum outro comentário desdenhoso. Tais coisas não são suportadas, e a criatura que tem piedade dela mesma fica o dia inteiro com um rosto sombrio. À medida que envelhece, você ouve sobre muitas amizades feridas, muita negligência, muita falta de amor e, acima de tudo, falta de compreensão, porque a pessoa que se compadece de si mesma nunca é pelos outros. Mesmo que ela seja uma pessoa razoavelmente forte, ela pode se tornar uma hipocondríaca, com uma dor aqui e uma sensação ali, que ela detalhará ao médico a cada hora. O médico lamenta o paciente infeliz e sabe que sofre de uma doença pior do que ele próprio imagina; mas ele não tem remédios para a autopiedade, embora possa dar garrafas de água colorida e pílulas de pão para animar seu paciente. Você fica inclinado a rir do que [p 90] parece ser um estado mental mórbido, isto é, doente; mas, de fato, o Demônio da Piedade é a autopiedade, e trata-se de um inimigo enganador. Muitas pessoas, aparentemente fortes e boas, foram induzidas por ele a desistir de suas vidas inteiras para refletir sobre alguma lesão real ou imaginada. Nenhum inquilino que se apossou indevidamente do coração, alienou mais amigos ou faz mais para banir as alegrias da vida do que a autopiedade.

Nossas Defesas.—Nossa defesa é dupla. Em primeiro lugar, nunca devemos deixar nossa mente pensar em qualquer dor ou enfermidade corporal; pode até ser que estejamos doentes e doloridos em nossos corpos, mas cabe a nós mesmos estar bem e alegres em nossas mentes; e, de fato, muitos grandes sofredores são o próprio centro de seus lares, tão alegres e confortantes são eles. Precisamos ter um cuidado redobrado, para nunca repassar em nossas mentes, por um instante, qualquer palavra precipitada ou mesmo intencional, que possa nos ofender. Um ponto não maior do que meio centavo, pode bloquear o sol do amor e bondade de nossos amigos, de toda a felicidade da vida, e nos trancar em uma cela fria e sombria de descontentamento trêmulo. Não reflitamos sobre pequenos aborrecimentos, para sermos capazes de suportar os grandes docemente. Não pensemos sobre nossas pequenas dores, e nossas grandes dores serão facilmente suportáveis.

A outra, e mais segura maneira de nos protegermos dessa possessão maligna é pensar nos outros. Seja rápido em discernir as dores e sofrimentos dos outros e esteja pronto para oferecer ajuda. Não é possível sermos consumidos em pensamentos sobre duas coisas ao mesmo tempo. Se nossas mentes estiverem ocupadas com outras pessoas, perto ou distantes, em casa ou no exterior, não teremos tempo nem inclinação para lamentar a nós mesmos.

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CAPÍTULO III

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A BENEVOLÊNCIA

“Reformar o Mundo, ou suportá-lo.”—É comum falar como se a Benevolência não significasse nada além do que doar dinheiro ou outra ajuda qualquer a pessoas necessitadas; mas é possível oferecer uma grande quantidade desse tipo de ajuda sem ser benevolente e ser benevolente sem oferecer muita ajuda material. Ser benevolente é ter boa vontade para com todos os homens. O sábio imperador, Marco Aurélio, descreveu a forma mais simples de Benevolência quando disse: “Os homens nascem para serem úteis uns aos outros; portanto, reforme o mundo ou suporte-o!” O mínimo que podemos fazer pelo mundo é suportá-lo; o mundo, neste caso, tratando-se de pessoas que por qualquer motivo, são desagradáveis ​​para nós. Mas, a Benevolência nos torna capaz, não apenas de suportar as pessoas que nos incomodam e nos irritam, mas também de lhes dar sincero e caloroso deleite. Talvez não exista ninguém a quem não possamos amar se realmente o conhecermos, porque todas as pessoas nascem com as belas qualidades de mente e coração das quais discutimos aqui, em maior ou menor grau; e embora a beleza da natureza de uma pessoa possa ser como uma pedra preciosa enterrada sob uma pilha de poeira, é sempre possível remover a poeira e recuperar a pedra. Um criminoso tem, possivelmente, uma esposa que o ama—não [p 92] porque ela ama a baixeza dele, mas porque vê nele as possibilidades de beleza.

As Falhas não são o Todo de uma Pessoa.—Os benevolentes percebem que falhas óbvias e desagradáveis ​​não definem o ser humano, assim como queimaduras também não definem o sol; então eles não têm dificuldade em lidar com falhas ou, o que é melhor, tentar corrigi-las; e, ao mesmo tempo, dando o mesmo carinho ou amor à pessoa como se essas falhas não estivessem presentes. Esse é o tipo de benevolência que os pais mostram aos filhos, que irmãos e irmãs mostram uns aos outros, que é devida de amigo para amigo, de vizinho para vizinho e, em um círculo gradualmente cada vez mais amplo, para todas as pessoas com quem temos contato, ou cujo trabalho e maneiras nos são apresentados. Benevolência não se dirige com duras palavras contra o marceneiro quando se depara com uma porta que não fecha ou uma janela que não abre. Ela sabe que o marceneiro é, no fundo, um bom sujeito, que provavelmente não foi treinado em obter o melhor de si mesmo, e então fica contente com o trabalho desleixado. Portanto, até mesmo uma porta escancarada e a janela imóvel estimulam a Benevolência a pensar bem sobre as pessoas em geral, para que outros marceneiros possam fazer um trabalho melhor.

O Trabalho da Boa Vontade.—Você observará que a Benevolência não é de modo algum um preguiçoso Lorde da câmara. Ele pode suportar as coisas erradas e as maneiras que o desagradam, mas não pode deixar as pessoas que se comportam mal em paz. Ele gosta muito delas para suportar que elas se estraguem com essa ou outra falha. Ele não pode suportar que as pessoas cresçam na ignorância, ou que haja doença, sofrimento ou falta de amizade no [p 93] mundo; portanto, suas mãos e seu coração estão sempre ocupados com algum trabalho de ajuda.

A Benevolência, portanto, tem muitas funções, mas, sempre que seu semblante se volta, ela apresenta o mesmo aspecto. A Benevolência é sempre graciosa, simples, agradável e acessível, porque ela gosta tanto de homens e mulheres, meninos e meninas. Ela também é incansável, porque, com tantos amigos que têm tantas necessidades, há muito o que fazer; mas tudo o que ela faz lhe dá prazer, por isso é fácil para ela sorrir em seu caminho.

Os Inimigos da Boa Vontade.—Que mundo abençoado teríamos se a primavera da Benevolência brincasse livremente em todo coração humano! Mas uma tropa inteira de demônios obstrui todos os movimentos deste Ministro benéfico. Há o Desagradável, que encontra ofensa de todas as maneiras que não são exatamente as nossas próprias maneiras. Existe Exigência, observando os detalhes para se ressentir com qualquer transgressão, por menor que seja, mesmo quando não intencional. A Censura está ali, para julgar sem pensar em melhorar. O Egoísmo está pronto para ocupar todo o campo do coração, de modo que não reste nenhum espaço para as preocupações de outras pessoas com as quais a Benevolência está envolvida. Preguiça está ali para simular a Boa Vontade com sua natureza mansa, que leva as coisas de maneira agradável desde que não seja necessário se preocupar com nada. Tolerância é a forma de boa natureza que é tão despreocupada com relação às opiniões de outras pessoas quanto a boa natureza é com relação a suas ações. Tolerar ou aceitar os princípios e opiniões que regem a vida de outras pessoas é indiferença e não boa vontade. A Sinceridade, a Honestidade com os pensamentos de outras pessoas, é o que a Benevolência oferece.

[p 94]

A Paz da Boa Vontade.—A Benevolência tem tantas funções que podemos notar apenas algumas delas; mas é bom que saibamos que ela significa pelo menos uma Boa Vontade ativa. Quando percebemos isso, a mensagem angélica—“Paz na terra aos homens de boa vontade”—terá algum significado para nós.

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CAPÍTULO IV

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A COMPAIXÃO

Compaixão para com Um, a Chave para Todos.—A Compaixão é um servo tratado injustamente. Assume-se que ele é de um caráter sentimental e que percorre o mundo enxugando lágrimas e acalmando angústias, e que esse é todo o seu trabalho. Mas Compaixão é compreensão; e ela colhe frutos de alegria para si mesma, embora ocasionalmente deva sofrer. Pois entender um ser humano tão completamente a ponto de sentir seus sentimentos e pensar seus pensamentos é realmente como se apossar de um novo mundo; é ganhar o poder de viver a vida de outra pessoa. É como se o coração criasse espaço para se expandir, e começamos a entender a grande vida dos anjos de Deus. Pode ocorrer de termos compaixão quase perfeita por uma pessoa e permitirmos que ela se torne única; conhecemos aquela pessoa e acabamos por excluir todas as outras; mas isso é tornar exclusivo um presente destinado ao bem geral. Cada característica que conhecemos em uma pessoa deve ser para nós uma chave com a qual podemos conhecer a natureza de outras. Se descobrirmos que é possível ferir uma pessoa com uma palavra, espancar uma pessoa com um olhar, deixemos que esse conhecimento nos torne ternos e delicados em nossas relações com todas as pessoas; porque como saber [p 96] a intensidade necessária para machucar? Se conhecermos uma pessoa que empalidece diante de um pensamento elevado, cujas lágrimas surgem ao contar uma ação heróica, vamos aprender, a partir disso, que esses são pensamentos e ações que têm poder para mover todos nós; portanto, devemos dar livremente do nosso melhor, sem a noção arrogante de que Fulano não entenderia. Se a música, a poesia, a arte nos dão alegria, não hesitemos em apresentar essas alegrias aos outros; pois, de fato, todas as outras pessoas foram criadas, em todos os aspectos, como nós, embora cada uma com uma experiência diferente. O orador cuja Compaixão está em exercício, apela à generosidade, delicadeza, coragem, lealdade de uma multidão de pessoas diferentes; e ele nunca apela em vão. Sua Compaixão, sua compreensão, discerniu todas essas riquezas no coração da multidão promissora diante dele; e, como Ariel liberto de sua prisão na árvore, um belo ser humano se liberta de muitas prisões humanas ao toque dessa ação.

Uma Alavanca para Levantar.—Compaixão é um olho para discernir, uma alavanca para levantar, um braço para sustentar. O serviço prestado ao mundo pelos grandes pensadores—os poetas e os artistas—e pelos grandes executores—os heróis—é que eles lançaram antenas, por assim dizer, para a nossa compaixão. Dizemos que uma imagem ou poema, ou a história de uma ação nobre, nos ‘toca.’ Nós também pensamos aquele pensamento ou vivemos aquela ação e, imediatamente, somos elevados e sustentados. Essa é a compaixão que devemos a nossos companheiros, próximos e distantes. Se temos algo bom para dar, vamos dar, sabendo com certeza que eles responderão. Se deixarmos de dar essa Compaixão, se considerarmos as pessoas a nosso redor como tendo pensamentos pequenos e indignos, realizando ações más, indignas e incapazes de coisas melhores, colheremos nossa recompensa. Nós estaremos realmente, embora não sejamos [p 97] ciente disso, tendo Compaixão a tudo o que é baixo nos outros e, assim, fortalecendo e aumentando sua baixeza: ao mesmo tempo, estaremos nos fechando em hábitos duros e estreitos em pensamento e na vida.

A virtude se esvai de nós.—Esse importante ofício da Compaixão, esse poder de ver, elevar e sustentar não deve ser perdido de vista quando é a tristeza, a ansiedade ou o sofrimento do outro que o desperta. Devemos ver a calamidade como o sofredor a vê, sentir como ele a sente, mesmo que seja em menor grau; nós mesmos devemos sofrer também ou não temos nada para dar. Foi dito de nosso Senhor que ‘a virtude saiu dele’ quando Ele curou; e é apenas quando a virtude—isto é, nossa potência, nossa força, nossa vida—emerge de nós, que temos poder para ajudar e curar.

Uma falsa Compaixão.—Existe uma falsa compaixão muito popular entre os que dão e os que recebem; na verdade, é uma tentativa de popularidade. A pessoa vê, mas não vê o suficiente. Ela percebe que o sofredor que pensa em si mesmo pode ser consolado da mesma maneira que uma babá imprudente consolará uma criança que bateu a cabeça contra a mesa. ‘Mesa travessa!’ diz a babá e chicoteia a mesa. Da mesma forma, o pretenso simpatizante reprova a causa do sofrimento e enfraquece o sofredor por uma pena fraca, levando-o a ter pena de si mesmo. A Autopiedade talvez seja o último infortúnio que pode cair sobre qualquer homem; e é uma degradação da compaixão quando ela acomoda o sofredor a si mesmo e não o resgata de si mesmo. A frieza de tentar apoiar uma pessoa sem compartilhar seu sofrimento é menos pior do que essa compaixão falsa; e causa menos danos, porque o som falso dela é mais facilmente discernido.

[p 98]

Tato.—‘Tato’ é quase outra forma da palavra compaixão; ambas as palavras empregam o sentido do tato para apresentar nossa percepção um do outro. Tato percebe onde uma palavra machuca, onde um gesto irrita, onde palavras de compaixão são intrusivas, onde um sorriso e um olhar de bondade são melhores do que a palavra falada. Tato é comumente o resultado da boa educação; mas o tato mais verdadeiro é uma expressão de compaixão que percebe o que está acontecendo em outra mente. Talvez, ao Tato pertença o lado mais simples da Compaixão, o interesse ativo da cooperação nas atividades e hobbies das pessoas com quem vivemos, o interesse passivo de um ouvido aberto. Um ouvinte atento e respeitoso realiza algumas das mais altas funções da Compaixão; ele eleva e sustenta a pessoa a quem escuta, eleva a autoestima de quem fez alguma coisa, viu alguma coisa ou sofreu alguma coisa, que deseja contar. Esse é um serviço verdadeiro, porque todos nós, ‘mesmo os mais jovens,’ pensamos muito pouco sobre nós mesmos; e por essa razão não temos coragem de fazer aquilo que é possível para nós.

Demônios tentando representar esta Virtude.—Não podemos detalhar todos os ofícios da Compaixão, mas devemos considerar alguns dos Demônios presentes neste Representante Virtuoso. O principal deles, e totalmente fatal, é a auto-ocupação nascida do egoísmo. Aquele cujo olhar está fixo em si mesmo, em seus direitos e necessidades, seus desejos e exigências, seus poderes ou suas fraquezas, seus sucessos ou fracassos, seu valor ou sua indignidade, não tem mais espaço para compaixão dentro dele do que um cálice cheio tem para mais vinho. A manifestação passiva do egoísmo é a Indiferença; entre suas formas ativas estão a Vaidade crédula e solícita, a Aversão e a Antipatia.

[p 99]

CAPÍTULO V

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A BONDADE

“Aquela melhor parte da vida de um homem bom,

Seus pequenos, anônimos, e esquecidos atos

De bondade e amor.”

Wordsworth

É interessante que um grande poeta, coloque os esquecidos atos de bondade em primeiro lugar na ordem de mérito dos atos da vida de um homem bom. A bondade também é um Lorde nascido na realeza: conheço uma pessoa pequena, que não tem idade suficiente para conversar, mas que puxa uma cadeira e dá um tapinha para que o visitante se sente; até um selvagem não instruído tem impulsos de bondade.

A Bondade Torna a Vida Agradável para os Outros.—A lei da Bondade é universal. Alguém poderia pensar à primeira vista que Compaixão, Benevolência e Empatia deveriam cobrir todo o campo; e que, com esses presentes, o ofício da Bondade é apenas uma função na Câmara do Coração. Mas existe um princípio curioso na natureza humana, melhor descrito talvez como vis inertiæ, que pode tornar uma pessoa benevolente, compassiva, e compreensiva, lenta para fazer as pequenas coisas cotidianas sobre as quais a Bondade se preocupa. O ofício da Bondade é simplesmente tornar a vida cotidiana agradável e confortável para os outros, sejam eles os nossos animais de estimação que alimentamos e atendemos, nosso cachorro com o qual [p 100] brincamos e levamos para passear, nosso cavalo que não apenas alimentamos e cuidamos, mas encorajamos e incentivamos com mão e palavra amiga, ou nossa família e vizinhos, ricos e pobres, que oferecem um amplo campo para nossa Bondade. O pessoa bondosa é descrita por vários títulos: ela é chamada de cortês ou atenta, prestativa ou atenciosa, conforme mostra sua bondade, abstendo-se ou falando, por seus modos, consideração, palavras e atos.

A Bondade da Cortesia.—Nós, ingleses, estamos prontos para pensar que não importa muito como nos comportamos, desde que nossos corações estejam bem; e isso se transforma em um costume que é um pouco doloroso e repulsivo e, portanto, um pouco cruel; fazendo com que percamos a nossa chance de aplicar a Bondade da Cortesia. Também sentimos falta das cortesias dos gestos; é bom em uma cidade alemã ou dinamarquesa, ver um garoto de entregas erguer o chapéu para outro, ou um estudante para outro estudante ou um porteiro para lavadeira, sem qualquer sensação de constrangimento; mas nessas questões adquirimos um mau hábito nacional. Nesses lugares, talvez, os ricos e os pobres se encontram, porque não existe uma luta inconsciente por um status social que não lhes pertence e, portanto, ambos podem se dar ao luxo de serem simples, atenciosos, graciosos e corteses com todos em seu caminho.

Simplicidade.—Simplicidade é a qualidade especial da Bondade; as pessoas podem ser bondosas apenas quando todos os seus pensamentos são dados à pessoa ou criatura com quem praticam a bondade, e quando não há um olhar para trás para ver como o assunto afeta a si mesmo. Muito já foi dito e escrito sobre bondade, sobre trazer chinelos e banquinhos, presentes de flores e muito mais. Existe até um movimento para fazer as crianças [p 101] serem bondosas, contando quantas coisas boas elas fazem no decorrer de cada dia; mas isso estraga tudo; a essência dos atos de bondade é que eles não devem ser lembrados. Certamente, nunca devemos mencionar uma bondade que fizemos, seja com a pessoa interessada ou com outras pessoas; mas, principalmente, tenhamos cuidado para não dizermos a nós mesmos: ‘Eu fiz isso e aquilo pelo Fulano e agora veja como ele me trata!’ ou pense que, se recebermos um ato de bondade, podemos suplantá-lo, por assim dizer, associando a um favor. Pior ainda é a noção de que, ter sido bondoso com os outros, nos dá o direito de esperar grandes coisas em troca, de sermos indelicados ​​e desagradáveis ​​se as reivindicações que estabelecemos não parecerem reconhecidas. Mas escapamos dessas armadilhas quando a Bondade é simples, e nem sabemos que estamos sendo gentis; não são apenas nossos presentes para os pobres que são cobertos pelo preceito de nosso Senhor: “Não faça a mão direita saber o que faz a mão esquerda.”

Todo mundo quer ser gentil:—

“O homem é querido pelo homem! Os mais pobres

Anseiam por alguns momentos em uma vida cansada,

Quando eles podem saber e sentir que foram

Eles mesmos, os que geraram e os que deram

Algumas pequenas bênçãos; que foram bondosos com aqueles

Que precisavam de bondade.”

Wordsworth.

Bondade em Interpretação.—Mas as maiores, mais doces e mais generosas bondades, sejam talvez aquelas em que menos pensamos; falo sobre a bondade em interpretação. Sempre existem duas maneiras de entender as palavras, os atos e os motivos de outras pessoas; e a natureza humana é tão contraditória que os dois lados podem estar igualmente certos; a diferença está no como interpretamos [p 102] os pensamentos das outras pessoas. Se pensarmos com bondade sobre pensamentos alheios—como, por exemplo, que uma ação ou palavra mal colocada possa surgir de um pouco de falta de jeito e não da falta de bondade de coração—provavelmente estaremos certos e não seremos mais do que justos com a pessoa. Mas, supondo que estejamos errados, nossa bondosa interpretação terá um efeito duplo. Irá, mais rápido do que qualquer repreensão, condenar nosso vizinho de sua crueldade, e isso despertará nele os sentimentos agradáveis pelos quais já lhe damos crédito. De todas as causas da infelicidade, talvez poucas causem mais sofrimento no mundo do que o hábito, que até as pessoas boas se permitem, de interpretar unilateralmente os caminhos e palavras das pessoas com quem vivem. Esse hábito tem outro efeito ruim, especialmente sobre os jovens, que são grandemente influenciados pela opinião de seus companheiros. Eles acham que o Fulano rirá deles por cumprir com uma ação obrigatória, de modo que se abstém de seguir os bons impulsos de um bom coração. A bondade que é simples não pensa em nada disso, nem coloca más interpretações nos pensamentos que os outros podem pensar em certas circunstâncias. “Sejam bondosos uns para com os outros” não é um preceito fácil, mas—

“Todas as alegrias mundanas são inferiores

A única alegria de fazer a bondade. “

Herbert.

[p 103]

CAPÍTULO VI

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A GENEROSIDADE

Impulsos Generosos comuns a todo o Mundo.—À primeira vista, parecia que Generosidade não era um Lord comum a todos os corações, mas governava apenas os corações mais nobres; todavia isso não é verdade. Quando toda a Inglaterra enlouquece de alegria porque a pequena cidade de Mafeking é liberada da batalha, quando todos esquecem problemas pessoais, esquemas, preocupações, aborrecimentos, até fome e frio e necessidade corporal, sendo aquecidos e alimentados, por assim dizer, por uma alegria pública, ou suavizados e sensibilizados por uma tristeza pública, é porque todas as pessoas são movidas pelo que é chamado de impulso generoso, um impulso que as leva, mesmo que apenas por um momento, a viver fora de suas próprias vidas. Certa vez, ouvi uma generosa palestra, por meio de um grande poeta, proferida para uma platéia lotada de milhares de pessoas de diferentes culturas e condições. Foi interessante ouvir as observações que escutamos quando saímos da multidão. Um homem disse, com a voz embargada: “Ora, aquele homem poderia fazer qualquer coisa conosco, nos conduzir a qualquer cruzada que ele quisesse!” e ele estava certo. Esta é a história dos movimentos generosos que agitaram o mundo, como as Cruzadas, a Guerra Civil contra a escravidão na América; um pensamento foi [p 104] distribuído, o que provocou algum impulso generoso comum a todo o mundo. A natureza da Generosidade é produzir, dar, sempre às custas de uma privação pessoal ou sofrimento, seja ele pequeno ou grande. Não há generosidade em dar o que nunca perderemos e não queremos; isso é mera boa natureza e não é nem bondade, a menos que surja de um pensamento real sobre as necessidades de outra pessoa.

Grande Confiança.—A Generosidade em seu nível mais elevado, e um pouco enfeitada, se torna Entusiasmo, mas disso falaremos adiante. Podemos entender melhor a natureza desse governante de homens se considerarmos que o que a Magnanimidade é para as coisas da mente, a Generosidade é para as coisas do coração. Pensamentos amplos e calorosos sobre a vida e de nossas relações um com o outro, encontram lugar no homem generoso. Ele é incapaz de condenar amargamente e indiscriminadamente as classes ou países, festas ou credos. Ele é impaciente com o humor barato, cujas piadas custam a integridade do caráter de toda uma classe de pessoas, sejam eles encanadores, estucadores ou fabricantes de castiçais. Ele é igualmente impaciente com a sabedoria mundana que passa pela vida esperando ser enganada aqui e ali; e ele descobre que, no geral, é ele quem possui a sabedoria deste mundo; pois, por um tratamento justo e generoso, ele pode passar por uma vida longa, quase sem registro que mostre a iniquidade e a traição de seus semelhantes. E então, se ele tem apenas seis centavos para gastar, gasta de maneira abundante e confiante. É uma certa grande confiança em sua conduta, e não a grandeza de seus dons, ou a liberdade de seus gastos, que define o homem generoso.

[p 105]

A Generosidade é Cara, mas também Recompensadora.—Da mesma maneira, em suas relações com amigos e vizinhos, ele não guarda ressentimentos; isto é, ele não está vigiando que outros devam dar a ele o que ele pensa ser devido à observância, consideração, serviço, etc. Ele permite que outros sejam árbitros de sua própria conduta em todos esses assuntos; e esses outros respondem, em grande parte, à confiança depositada neles. Isso não é igual a atitude preguiçosa da mente que permite tudo, porque a carência por respeito próprio cria uma sede de popularidade. O homem generoso terá amigos de padrões muito variados, porque é capaz de se relacionar com homens de mentes diversificadas e de concordar em muitos de seus pontos. Seus interesses são amplos, suas interpretações são generosas; e onde quer que seu interesse vá, um brilho latente o acompanha, pronto para irromper no calor da ação de vez em quando.

A Generosidade é cara, porque está sempre gastando, seja o conteúdo do coração ou do bolso; mas também é recompensadora, pois já foi dito: “Dai sempre, e recebereis sobre o vosso colo uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante; generosamente vos darão.” A generosidade também é uma graça salvadora; pois o homem generoso escapa de mil pequenas perplexidades, preocupações e aborrecimentos; ele caminha sereno em uma grande sala. Há tantas coisas importantes para se preocupar que ele não tem mente nem tempo para as pequenas preocupações da vida; suas preocupações são realmente grandes, pois o que preocupa a raça humana preocupa a ele também. Mas, por ser uma preocupação do coração, calorosa e resplandecente, ela é devidamente distribuída. Existem as regiões equatorial e polar de suas preocupações, nenhuma delas completamente esquecidas. Ele não se abala em amar outros países como ele ama seu próprio, ou os filhos de seu vizinho como sua própria família.

[p 106]

Noções falaciosas que restringem a Generosidade.—Falei aqui sobre o homem generoso; mas, de fato, este Lorde está presente em todos nós, pronto com a oferta de uma vida ampla e calorosa. Mas certas noções falaciosas e pequenas propensões tendem a mantê-lo fechado em limites estreitos, a menos que alguma palavra ou ocasião feliz solte-o. Quando isso acontece com uma comunidade inteira, ficamos alarmados e tememos que todos estejam enlouquecendo; mas, na verdade, é que de repente começamos a viver em grande escala, sem as restrições de um modo de vida que estamos acostumados.

‘Que todo homem cuide de sua própria vida’ é uma das falácias que surgem a uma pessoa com um senso de obrigação e limitação apenas aos seus próprios negócios. O homem não apenas exclui os interesses generosos de uma vida mais ampla, mas também é consumido pelos cuidados de sua condição em todos os detalhes insignificantes. No entanto, cada um de nós deve sim cuidar de nossas próprias vidas, ou nos tornaremos membros indignos da sociedade, e jogaremos tanto do trabalho do mundo quanto nossa participação adequada nele, sobre os ombros de outras pessoas. O segredo é cuidar de nossas vidas com rigor dentro do horário apropriado, se essas horas são determinadas para nós ou se as governamos por nós mesmos. Mas, terminadas as horas desse trabalho, pensemos na ofensa que é manter nossos pensamentos na nossa vida, e lancemos todo o nosso interesse em canais externos e mais amplos. Aquilo que nos parece nosso negócio na vida, mesmo aquele trabalho incessante de ser mãe de uma família, será muito melhor feito se nos governarmos dessa maneira, porque seremos pessoas melhores e mais amplas; e quanto mais houver de uma pessoa, mais trabalho poderá ser feito.

‘Cada um por si, e Deus por todos,’ é outra falácia que mantém vidas em salas estreitas. [p 107] O homem não é por si mesmo. Sair de nós mesmos e entrar na ampla correnteza da vida humana, de todos os tipos e condições, é nossa sabedoria e deve ser de nosso interesse.

Outra falácia extremamente infeliz e geralmente não mencionada é: ‘Todas as pessoas com quem me relaciono são piores que eu.’ Isso é surpreendente, posto em palavras; mas por que deveríamos supor que essa pessoa pretende nos desprezar e uma outra nos ofender, quando não temos tais intenções em relação a elas; que seremos enganados aqui e defraudados lá, quando nós mesmos não trairíamos e fraudaríamos de bom grado? É generoso confiar, confiar livremente, confiar em nossos comerciantes e servos, nossos amigos e vizinhos, nos que têm autoridade sobre nós e nos nossos subordinados.

“Seja nobre! e a nobreza que jaz

Em outros homens, dormindo, mas nunca morta—

Se elevará em grandiosidade para encontrar a sua!”

Lowell.

[p 108]

CAPÍTULO VII

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A GRATIDÃO

A Alegria de um coração Agradecido.—Nenhum outro Representante do Coração deve fazer mais para nos guiar a uma vida alegre e feliz, do que a Gratidão. Quão bom e feliz é ser grato! A alegria não é meramente o fato de termos recebido um favor ou um pouco de bondade que demonstra benevolência e amor, mas que uma coisa bonita saiu do belo coração de outra pessoa para nós; e a alegria na beleza de caráter daquela outra pessoa, proporciona mais deleite do que qualquer ganho ou prazer que favores possam nos trazer. Perdemos essa alegria com bastante frequência porque somos absorvidos demasiadamente em nós mesmos para ter consciência da bondade, ou somos complacentes demais para pensar em qualquer bondade mais do que em nosso mérito. Os jovens tendem a se acostumar com as bondades abundantes e transbordantes de seus pais como algo sempre presente; e assim perdem a oportunidade da dupla alegria que podem ter com um toque, uma palavra, um olhar, um pequeno arranjo para o seu deleite, mil coisas melhores, por assim dizer, do que o amor que é devido de pai para filho. A bondade é como uma flor que desabrocha sobre você naturalmente, e estar vigiando essas flores acrescenta muito [p 109] em nossa alegria para com as outras pessoas, bem como para o feliz sentimento de ser amado e cuidado. Você entra em uma loja, e o lojista que o conhece (não estou falando de grandes lojas) acrescenta algo agradável à sua compra, que lhe faz alegre no caminho de casa—alguma gentileza ou palavra, alguma pergunta que mostre interesse em você e na sua família, talvez nada além de um sorriso, mas você experimentou relações humanas agradáveis ​​com ele porque ele lhe fez uma gentileza. Existem dois caminhos abertos ao receptor dessa pequena gentileza. Uma é sentir-se uma pessoa tão importante que é do interesse dos lojistas e afins mostrar-lhe atenção. O outro é partir com a alegria crescente de um coração agradecido, sabendo que ele leva consigo mais do que comprou.

Um coração agradecido recebe em dobro.—A vida seria sem graça e sem flores, se não estivéssemos recebendo continuamente mais do que podemos pagar em dinheiro ou em nossas próprias ações; mas um coração agradecido recebe em dobro, porque se alegra não apenas no presente, mas na pessoa que presenteia. Agradecimentos formais são adequados o suficiente em algumas ocasiões, mas existem outras maneiras de expressar gratidão, que, de fato, são como amor e fogo—não podem ser escondidas. Um olhar, um sorriso, uma palavra de apreço e reconhecimento diretamente do coração encherão a pessoa que nos fez uma gentileza de alegria. Mas evitemos todas as expressões de agradecimento que não sejam simples e sinceras—simples, pois estamos realmente pensando na bondade da outra pessoa e não em nós mesmos; e sincera, na medida em que não dizemos uma palavra mais do que sentimos, ou fazemos de conta que valorizamos um presente quando realmente não é de valor para nós.

[p 110]

A Reprovação da Ingratidão.—Existe uma história antiga de uma cidade que decidiu que a ingratidão seria o pior dos crimes. O povo da cidade era prático e colocou um sino em um local aberto, mas desolado, para ser tocado por qualquer um que experimentasse ingratidão. O tempo passou e o sino foi esquecido, talvez porque as pessoas estivessem vigilantes contra esse crime. Mas um dia o sino tocou e toda a cidade correu para ver quem tinha uma queixa a fazer de um ingrato concidadão. Um burro tinha acidentalmente puxado a corda com o pé enquanto ele se movia em busca do capim que crescia no local, e o sino tocou. A princípio, as pessoas riram; mas quando eles olharam para o pobre burro e o acharam um infortunado animal, quase fraco demais para ficar de pé, eles se entreolharam e disseram: “De quem é esse burro?” A investigação identificou o proprietário, que foi forçado a confessar que seu burro, depois de servi-lo bem por muitos anos, ficou finalmente velho demais para seu trabalho, então ele soltou a pobre criatura para sobreviver do que podia. O povo decidiu que o burro tinha agido de acordo com a lei ao tocar o sino; e o homem mau pagou a pena, que incluía a boa guarda do jumento, com que graça ele podia. Fazer uso de outras pessoas, servir-se delas, é o pecado da ingratidão. O homem agradecido tem uma boa memória e um olhar rápido para ver onde aqueles que serviram por sua vez precisam ser servidos. Em particular, ele aprecia a memória daqueles que o serviram na infância e na juventude, e procura oportunidades para servi-los.

A Gratidão espalha sua festa de alegria e ação de graças pelos presentes que chegam a ela sem nenhum pensamento especial dela por parte do doador, que de fato pode até ter deixado esse mundo centenas de anos [p 111] atrás. Assim, ela expressa sua oração de agradecimento por um livro agradável ou útil, por uma linda pintura, por um dia glorioso, pelo rosto de uma criança, pelo trabalho feliz, por lugares agradáveis. Segundo o ditado de Jeremy Taylor, ele é rápido em “provar a delícia de seu trabalho.” Ele é grato por todo o bem que lhe chega. A pobre alma que acredita que a vida produz a ele nada além de seus méritos, que seria, de fato, impossível dar-lhe mais do que ele paga, seja em moeda ou em mérito, deve ser lamentado por toda a alegria que perde, além de ser tido como culpado pela dor e irritação que seu progresso na vida deve causar. “Sim, uma coisa alegre e agradável é ser agradecido!”

[p 112]

CAPÍTULO VIII

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A CORAGEM

Todos temos Coragem.—A palavra coragem chegou até nós do tempo em que o francês normando era a língua da corte e o cavalheirismo era a lei dos nobres. Os normandos acreditavam que a Coragem vinha do coração, como a palavra indica; Coragem era o caráter completo de um homem; quem não tinha Coragem, não tinha qualidade de masculinidade. Falamos pouco sobre isso hoje em dia, mas Coragem ainda é um grande Representante, um Lorde na Câmara do Coração, tendo sua morada por direito em toda a Alma Humana e, de fato, até em animais tímidos.

A Coragem do Ataque.—As ovelhas têm a Coragem do Ataque pelo bem do cordeiro; o pássaro protege seus ovos mesmo diante daquele monstro, o ser humano. Um chapim-azul considerou apropriado aninhar-se em uma caixa de correio; é claro que as pessoas foram ver a cena, e a coragem com que a pequena criatura chiou para os gigantescos intrusos foi muito interessante e admirável. A criança pequena tem coragem de proteger seus animais de estimação. Muitas mães tenras tiveram a coragem de enfrentar uma morte terrível para salvar seus bebês. Se acreditarmos, temos toda a coragem para enfrentar qualquer calamidade, inimigo ou morte. Mas Coragem, como os outros [p 113] Lordes de nossa Vida, também é acompanhada por seus Demônios, o Medo, a Covardia, a Timidez, o Nervosismo.

A Coragem da Resistência.—O Medo, com sua família, o Pânico e a Ansiedade, está esperando os momentos em que a Coragem dorme, embalada pela segurança. Quando consideramos o esplêndido valor que homens de todos os tipos demonstram em batalhas, começamos a ver como a Coragem é universal; em nosso país o alistamento no exército é voluntário; mas a Coragem demonstrada mesmo pelos homens chamados pelo serviço militar obrigatório não é menor que a do nosso exército. Ao mesmo tempo, a possibilidade do homem ser dominado pelo Medo vergonhoso, e agir de acordo com o pânico nascido do Medo, foi demonstrada quando toda uma cavalaria, até então tão corajosa quanto o resto, ficou conhecida por, mais de uma vez, virar as costas e fugir diante do inimigo.

A Coragem da Serenidade.—Provavelmente, poucos de nós serão testados em um campo de batalha; mas o campo de batalha tem uma vantagem sobre as mil batalhas que cada um de nós tem que lutar em nossas vidas, porque a compaixão do grupo todo ajuda cada soldado a prosseguir. A Coragem necessária quando se perde uma perna em casa devido a uma queda, ou em lesão no campo de críquete é, talvez, maior do que a exibida pelo soldado no campo de batalha; e a forma de Coragem para enfrentar dor e infortúnio com calma e paciência é necessária a todos nós. Ninguém escapa ao chamado da Fortaleza, mesmo se for apenas na cadeira do dentista. É bom conhecermos a nós mesmos, sabermos, com certeza, que temos Coragem para tudo o que pode acontecer. Não porque somos mais valentes que os outros, mas porque todas as pessoas nascem com esse Lorde e Capitão do Coração. Seguros de nossa Coragem, não devemos deixar que essa coragem durma e nos deixe entrar em pânico por um acidente de carruagem, uma vespa ou um rato. É [p 114] indecoroso e impróprio, para qualquer um de nós, mesmo os mais jovens, perder o controle quando estamos feridos ou em perigo. Nós não apenas perdemos a chance de ser úteis para os outros, mas também nos tornamos um fardo e um espetáculo. O alarido ansioso diante das pequenas questões da vida, como viagens, mal entendidos domésticos, pressão no trabalho, é uma forma de pânico de medo, o medo de que tudo não corra bem ou de que algo possa ser esquecido ou deixado de lado. Devemos nos recompor e dizer: ‘O que isso importa? Toda preocupação indevida em coisas e compromissos não é digna de nós.’ São apenas as pessoas que importam; e a melhor coisa que podemos fazer é ver que uma pessoa mantém uma mente serena em circunstâncias incomuns ou preocupantes; assim teremos certeza de que essa pessoa estará pronta para ser útil.

A Coragem de nossos Assuntos.—A forma do medo que tende a se preocupar e se agitar sob qualquer leve estresse das circunstâncias se torna ansiedade diante de alguma expectativa de sucesso ou temor de calamidade. A ansiedade merece mais compaixão do que outras formas de medo, porque a pessoa que está ansiosa sofre muito, e a causa da ansiedade, geralmente, é infelizmente real. Mas cometemos injustiça com nós mesmos por estarmos ansiosos. Fomos enviados para a vida fortificados, alguns mais, outros menos, com uma Coragem que deve permitir-nos aceitar o presente sem ter medo do futuro. E, de fato fazemos isso, os mais fracos de nós, quando somos mantidos totalmente envolvidos nos afazeres do presente. É assim que mães e esposas podem passar meses cuidando de seus parentes enfermos mais próximos e mais queridos com semblante alegre. Elas dizem que não se atrevem a olhar para frente, que vivem de hora em hora, e assim são capazes de trazer felicidade e até alegria para a vida dos enfermos, apesar de um fim [p 115] triste estar diante deles. Se essa nobre Coragem é possível diante da dor que se aproxima, também é possível, se acreditarmos nela, diante de assuntos menores—exames futuros, perdas futuras, angústias de todo tipo, até a pior angústia, quando aqueles que nos são queridos fracassam e se afastam de Deus. “Não deixe seu coração ansioso” (R.V.) é a mandamento de Cristo. O mandamento pressupõe o poder da obediência, e é por isso que coisas tristes são faladas sobre os ‘medrosos e incrédulos.’

A Coragem de nossas Opiniões.—Além da Coragem do Ataque, da Coragem da Resistência, da Coragem da Serenidade e da Coragem de Nossos Assuntos, existem formas menores de Coragem que pertencem ao coração verdadeiramente corajoso. Existe a Coragem de nossas opiniões. Por opiniões, não quero dizer os bordões vagamente adotados, palavras de momento, aquelas coisas que ‘todo mundo diz’, com as quais é possível agradar mais do que assustar nossos amigos menos avançados; mas aquelas poucas opiniões fundamentadas em nossos próprios conhecimentos e princípios.

Vale a pena examinar quais são as nossas próprias opiniões quanto às questões discutidas em conversas e outros meios. Podemos descobrir que não temos opinião distinta. Nesse caso, não aceitemos a primeira opinião oferecida, mas pensemos, perguntemos, leiamos, consideremos ambos os lados e estejamos prontos com uma expressão de opinião moderada, clara e bem fundamentada quando alguém comenta por exemplo: ‘Acho que os missionários são um erro!’ ‘As religiões escolhidas pelas pessoas são as mais adequadas à sua natureza’; ou ‘Não adianta se preocupar com a multidão, são os poucos que têm intelecto ou veia artística que valem a pena ser considerados’; e assim por diante. Muitas vezes permitimos que as opiniões de outras pessoas sejam aceitas sem [p 116] protestarmos, porque acreditamos que elas foram cuidadosamente pensadas; mas é surpreendente como uma simples palavra com convicção reprima pessoas que expressam as opiniões mais absurdas. De qualquer forma, essa forma de Coragem é devida de nós.

A Coragem da Franqueza.—A Coragem da franqueza é muito fascinante. Devemos um certo grau de discrição a nós mesmos e aos outros: a pessoa que despeja todos os seus pensamentos indiscriminadamente é um aborrecimento; mas, por outro lado, quem mostra cautela indevida, reserva, desconfiança, tem um espírito medroso e incrédulo, e falha nas características do coração nobre. A motivação é o melhor guia para saber o limite nessa questão. Se somos reservados em expor nossos pensamentos porque não estamos dispostos a entediar nossos amigos com coisas triviais, está bem; mas se nos reservamos porque desconfiamos da compaixão, da justiça, da bondade ou da compreensão das pessoas com quem vivemos, fracassamos na Coragem.

A Coragem da Repreensão.—Muitas outras formas de Coragem estão disponíveis para cada um de nós; só podemos mencionar mais uma ou duas. A Coragem da Repreensão deve ser exercida com delicadeza e sutileza, mas não pode haver amizade fiel entre pessoas de idade similar sem essa Coragem; as justas e gentis repreensões dadas pelos jovens aos jovens são talvez mais convincentes e eficazes para correção do que as repreensões mais naturais e usuais dos anciãos.

A Coragem da Confissão.—Para citar mais uma forma de Coragem, a Coragem da Confissão aberta e franca daquilo que fizemos errado ou deixamos de fazer, nos pequenos assuntos da vida cotidiana, para a pessoa em questão, é muito fortalecedora; mas não tenho certeza de que o hábito de confessar sentimentos e [p 117] pensamentos sempre surja da Coragem. Atos e omissões são mais seguros.

A Coragem de nossa Capacidade.—Existe o que podemos chamar de Coragem da nossa Capacidade—a coragem que nos assegura de que podemos realizar o trabalho específico que surgir em nosso caminho sem dar ouvidos ao medo covarde que nos lembra de falhas no passado e de inaptidão no presente. É também a Coragem intelectual, que nos permite lidar com as tarefas da mente com um senso de suficiência. O pânico intelectual é responsável por muitas falhas; por nosso fracasso em entender um argumento, em seguir um experimento e, em grande parte, por nosso fracasso em falar e compreender palavras de línguas estrangeiras. O pânico intelectual também é responsável por tomarmos as palavras da moda como nossas próprias opiniões. Tememos que não somos capazes de formar uma opinião digna de ser mantida e passada adiante.

A Coragem da Oportunidade.—A Coragem da Oportunidade, da qual Shakespeare diz,—

“Há uma maré nos assuntos dos homens,

Que, quando ocorre durante o dilúvio, leva à fortuna,”

também está conectada com a Coragem da Capacidade e deve ser diferenciada da Tolice, que está pronta a procurar e experimentar todos os perigos. Uma das diferenças é, talvez, que a Coragem esteja pronta para o que vem, enquanto a Tolice procura. Coragem aguarda orientação,—

Aceitando como Credo

Que Circunstância, um oráculo sagrado,

Fala com a voz de Deus para almas fiéis.

[p 118]

CAPÍTULO IX

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A LEALDADE

Lealdade da Juventude.—Lealdade é a marca principal do caráter; mas isso é uma analogia errônea, pois é bom saber que Lealdade não é uma marca estampada em nós, mas um Lorde que já nasce dentro de nós. Em diferentes períodos da história, ou em diferentes períodos da vida, as pessoas dão o domínio de suas vidas a um ou outro desses Poderes do Coração. A era da cavalaria medieval era o período da Lealdade; e a juventude deve ter especialmente a era da cavalaria e da lealdade em suas vidas. Mas talvez essa não seja uma idade comum para Lealdade. Nossa tendência na juventude é acreditar que pensar por nós mesmos e servir a nós mesmos no caminho do progresso ou do prazer é o nosso principal negócio na vida. Pensamos que o mundo foi feito para nós, e não nós para o mundo, e que somos chamados a governar e não a servir. Mas esses pensamentos chegam até nós apenas em nossos piores momentos. A Lealdade, cuja marca é o serviço, afirma a si mesma. Sabemos que não somos nossos e que, nos realizamos de acordo com a Lealdade dentro de nós.

Nossas Lealdades preparadas para nós.—Estamos suficientemente prontos para dar uma Lealdade excêntrica a algum poeta ou ator, soldado ou sacerdote, a cujos pés teríamos o prazer de prestar nosso serviço; mas nisso, como no resto de nossas vidas, [p 119] não somos livres para escolher. Nossas Lealdades estão todas preparadas para nós, ou vêm até nós com nossos deveres, e nossa escolha é entre ser leal e desleal. A respeito disto, é bom sermos uma nação que tem um soberano, um objetivo visível sobre Lealdade, ser lealmente amada e servida em prol de seu cargo.

Lealdade ao nosso Rei.—Uma das melhores lições que a história tem para nos ensinar está nos exemplos de esplêndida lealdade e serviço, incluindo honra e reverência ilimitadas à pessoa do soberano e devoção de vida e alma, dos filhos e seguidores, à sua causa. Sir Henry Lee, em Woodstock, é um exemplo requintado dessa bela lealdade. Quando lemos, lamentamos que sua lealdade tenha sido gasta com um monarca de tão pouca dignidade; mas, no final, lembramos que o cavaleiro ganhou mais do que o rei por essa Lealdade, pois é melhor ser do que receber. Nossa amada Rainha, já falecida, comandava toda a nossa Lealdade, porque ela mesma conhecia e vivia pela Lealdade e serviço que devia ao seu povo; e dessa maneira ela nos elevou a um nível mais alto de vida.

Lealdade devida aos Nossos.—Depois do nosso Rei, nosso país reivindica nossa Lealdade. Não cometamos um erro. A Benevolência é devida ao mundo inteiro, mas a Lealdade é devida à nossa terra; e, por mais que possamos valorizar ou nos apegar a reis ou países estrangeiros, a dívida da Lealdade é devida não a eles, mas aos nossos. Comparações desagradáveis, depreciação da terra de nosso nascimento em favor de alguma terra de nossa escolha, cujas leis e governantes, formas e condições climáticas podemos preferir, são da natureza da deslealdade.

Opinião Pública responsável pela Anarquia.—Nós os mais velhos, ficamos tristes, chocados e muito [p 120] humilhados com a queda de um governante após o outro nas mãos das pessoas que se chamam anarquistas. Ficamos humilhados e envergonhados porque sabemos que esse tipo de crime, que não tem paralelo exato na história do passado, surge, na verdade, de uma falha no espírito de Lealdade no que é chamado de opinião pública. Portanto, os crimes repetidos que nos chocam são nossos também, pois todos ajudamos a formar a opinião pública. Sempre há em todos os países homens e mulheres em quem o pensamento geral errado sobre nossos deveres uns com os outros chega, por assim dizer, à tona e os fazem cometer um crime; mas é da opinião pública que essas pessoas obtêm suas noções originais. Não falemos mal do governante do nosso povo porque, se nos permitirmos falar mal, outros aceitarão nosso discurso maligno e o transformarão em ato criminoso. Se nos aborrecermos contra o governo, outros se levantarão contra os governantes, e reis em toda parte viverão aterrorizados com o ataque ao regicídio. O modo como estamos ligados uns aos outros e afetamos uns aos outros em todo o mundo é um pensamento muito solene; mas que podemos ajudar o mundo inteiro mantendo nossa própria Lealdade deve ser motivo de alegria.

Lealdade ao País.—Não tenho certeza, mas acho que as pessoas perdem fibra moral quando se tornam exilados voluntariamente de seu próprio país. Todo laço em que nascemos é necessário para a nossa conclusão. A Lealdade ao país, o patriotismo, é uma paixão nobre. As revoluções ocorrem quando o caráter de um soberano é tal que as pessoas que pensam corretamente não podem mais ser leais ao rei e ao país; quando leis injustas, impostos indevidos, a opressão dos pobres tornam o coração dos homens dolorido por sua pátria. A lealdade ao país exige honra, serviço e devoção pessoal. [p 121] A honra devida ao nosso país exige algum conhecimento inteligente de sua história, leis e instituições; de seus grandes homens e seu povo; de suas fraquezas e força; e não deve ser confundida com a atitude ignorante e impertinente do inglês ou do chinês que acredita que nascer um inglês ou um chinês o coloca em um nível mais alto do que as pessoas de todos os outros países; que seu próprio país e seu próprio governo estão certos em todas as circunstâncias, e outros países e outros governos estão sempre errados. Mas, por outro lado, ainda mais a ser evitado, é o espírito covarde daquele que mantém seu próprio país e seu próprio governo sempre errados e sempre piores, e exalta outras nações indevidamente por depreciar seus próprios interesses.

O Serviço de Lealdade.—Nosso serviço ao nosso país hoje em dia pode não significar mais do que o fato de termos um interesse vivo nas questões que ocupam o governo e nos problemas sociais que ocupam os pensadores; e que, se não somos chamados a servir o país em geral, no Parlamento, por exemplo, devemos dedicar tempo, trabalho e meios para avançar em qualquer administração local à qual estamos conectados. Talvez esse tipo de Lealdade nunca tenha sido tão nobremente exibido como é atualmente. Também não falhamos quando nosso país reivindica nossa devoção pessoal. Eventos recentes parecem mostrar que todo britânico, de todas as classes sociais, está pronto para a honra de dar a vida por seu país.

Lealdade a um Chefe.—Talvez a Lealdade em que ficamos aquém, em comparação com a Idade Média, seja a Lealdade que todo homem e mulher [p 122] deve a um chefe. Mais uma vez, Scott nos dá a expressão perfeita em “Torquil of the Oak”—o pai adotivo das Highlands, que sacrificou a si mesmo e seus nove filhos robustos para proteger a honra do jovem chefe que ele sabia ser um covarde confesso. Todo o incidente, contado como é, com reserva e simpatia, oferece uma das situações mais fortes da literatura. Mas a Lealdade desse tipo ainda vive entre nós. Poucos subalternos em ambos os serviços se permitiriam discutir sem reservas, a ação ou o caráter de seu chefe; e quanto aos homens, eles ainda aceitam que—“Eles não devem responder, não devem perguntar o por quê; devem somente fazer e morrer”; e, dado que eles morrem porque “alguém se enganou,” em um momento supremo de inquestionável Lealdade ao rei, país e comandante, vale, provavelmente cinquenta anos de vida mundana rotineira que não parece realmente uma vida real; isto é, supondo que o objetivo desta vida seja a nossa educação para uma vida mais plena. Dizem alguns diplomatas jovens e elegantes, que servem a seus vários chefes como secretários particulares, que um, mais soberbo que o resto, resmungou porque seu chefe o convocou tocando uma campainha; mas outro, que havia aprendido o segredo da ‘obediência digna e submissão orgulhosa,’ afirmou que, se o chefe lhe pedisse para limpar os sapatos, ele faria isso, é claro. Instâncias de esplêndida Lealdade aos chefes de família, partido, causa, casa, escola, etc., existem em abundância.

Lealdade aos Laços Pessoais.—A Lealdade aos laços pessoais, relacionamentos, amizades, dependentes, é um fato reconhecido pela maioria das pessoas. Todos sabemos que esses laços, sejam eles por natureza, como relacionamentos ou por escolha, como amizades e relações menos amistosas—servos, por exemplo—devem ser mantidos com [p 123] lealdade. Sabemos que o caráter e a conduta de nosso amigo são sagrados de críticas adversas, mesmo em nossos pensamentos particulares; que o que pensamos e temos a dizer sobre censura deve ser dito apenas a ele e a ele somente; que nosso tempo, nossa associação, nossa compaixão e nosso serviço estão à sua disposição, até onde podemos determinar. Não apenas isso, mas sabemos que ele deve ter o melhor de nós, nossos pensamentos mais profundos, nossas aspirações mais elevadas, na medida em que somos capazes de divulgá-las. Este último é reconhecido frequentemente nas amizades eleitas; mas nas amizades naturais de relacionamento, que cercam a maioria de nós, às vezes somos frugais e só damos nossos pensamentos superficiais comuns; e para nossos dependentes, aqueles com um nível educacional mais baixo do que nós, estamos aptos a rebaixar nossa conversa, como supomos, a esse nível. Nós estamos errados nisso; nosso melhor é devido em vários graus para manter todos esses relacionamentos, naturais, eleitos ou casuais, que compõem a doçura e o interesse de nossas vidas.

Uma Mente Constante.—A firmeza é, é claro, a essência de todas as Lealdades. Um homem de sessenta anos, que disse que sempre usava as botas do mesmo fabricante de botas desde que usava botas, nos dá uma dica do tipo de Lealdade que devemos em geral. Perdemos grande parte da graça da vida, correndo aqui e ali para servir o melhor a nós mesmos, assim pensamos, em relação a amigos, conhecidos, religiões, comerciantes, servos, pregadores, profetas. Talvez o melhor seja manter o que temos do que procurar continuamente uma nova loja para qualquer tipo de mercadoria. A força, graça e dignidade de uma mente constante é a colheita da Lealdade.

Objeta-se que algumas relações sejam impossíveis [p 124] e insuportáveis; que um servo é preguiçoso, um comerciante desonesto, um amigo indigno, um relativo agravante.

Algumas relações não são da nossa escolha e são para a vida; e aquilo que deve ser continuado, deve ser continuado com Lealdade; mas é melhor, talvez, desistir de um chefe ou dependente, por exemplo, a quem não podemos mais ser leais. Mas deixe que o rompimento aconteça com simplicidade e dignidade. Não nos permitamos fofocas e queixas; e devemos reconhecer que a Lealdade proíbe pequenos ressentimentos pessoais de ofensas ao nosso amour propre. Muitas vidas naufragam nesta rocha. Ao prejudicar nossos amigos por uma falha na Lealdade, nos ferimos muito mais.

Perfeição.—Os mesmos princípios de Lealdade se aplicam à Lealdade ao nosso trabalho e a qualquer causa que tenhamos adotado. Profundidade e esforço irrestrito pertencem a esse tipo de Lealdade; e, portanto, às vezes temos que passar por pessoas inamovíveis porque é impossível nos lançar a toda nova causa que nos é apresentada. Nós podemos apenas fazer o que somos capazes; e a Lealdade àquilo que estamos fazendo frequentemente proibirá esforços em novas direções.

Lealdade aos nossos Princípios.—Uma Lealdade pessoal de ordem superior é a que devemos aos nossos princípios. Inicialmente, são aqueles princípios pelos quais somos educados aos quais nossa fidelidade é devida; mas, aos poucos, à medida que o caráter se desenvolve, crescem convicções sobre nós, que passam a estar ligadas ao nosso ser. Esses, e não palavras da moda aqui e ali, publicadas nos jornais ou nas conversas comuns, são nossos princípios—posses que elaboramos com trabalho de pensamento e, talvez, dor de sentimento. Ele é fiel a si mesmo se é fiel a esses princípios; e nenhuma outra [p 125] Lealdade é de se esperar daquele que não é fiel a si mesmo. Talvez o mais importante desses princípios seja nossa religião—não nossa fé em Deus; isso é outra questão—mas a forma de religião que para nós é a expressão dessa fé. Uma regra segura é que a Lealdade proíba nossas brincadeiras com outras formas e outras idéias, para que não deixemos de ter convicções religiosas de qualquer tipo e nos tornemos abertos a mudanças e ansiosos pela emoção da novidade.

O hábito de críticas indignas e mesquinhas ao clero ou aos cultos ou missas aos quais estamos acostumados pode acabar criando esse hábito instável; A Lealdade proíbe esse tipo de fofoca mesquinha, pois também proíbe o hábito de correr de um lado para outro em busca de novidades.

Os Temperamentos que repugnam a Lealdade.—Os Demônios que trabalham para a destruição da Lealdade são, talvez, o Interesse Próprio, a Vaidade, e a Importância Pessoal. O Interesse Próprio nos leva a melhorar a nós mesmos à custa de qualquer vínculo. A vaidade nos mantém agitados por conta de pequenos ressentimentos que colocam a Lealdade fora do tribunal; e a Auto-Importância é incapaz de dar o primeiro lugar ao outro em coisas pequenas ou grandes, nos assuntos do país, paróquia ou lar. Esses inimigos estão sobre nós, mas a Lealdade está dentro de nós, forte e firme, e pedindo apenas para ser reconhecida, para que ela possa colocar o demônio para correr.

[p 126]

CAPÍTULO X

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A HUMILDADE

O Orgulho da Vida.—O Apóstolo menciona três causas de pecado nos homens—a luxúria da carne, isto é, a vontade de satisfazer os desejos do que chamamos de ‘natureza humana’; a luxúria do olho, a qual transforma a busca pelo deleite que a beleza nos dá no objetivo de toda a nossa vida, ao passo que deveria ser apenas uma parte dela; e o orgulho da vida. Dos três, a última é talvez a mais mortal, porque é a mais enganadora. As pessoas educadas com princípios de autocontrole e autodomínio estão sempre vigiando as concupiscências da carne. A luxúria do olho não nos atrai a todos com tanta força; mas quem conhece a maneira como o orgulho da vida nos acomete? Ainda assim, o Orgulho, poderoso como é, e variado como variadas são as suas formas, é apenas o Demônio, mais ou menos sujeito a um poder mais poderoso do que ele.

A Humildade Nasce em todos Nós.—A humildade nasce em todos nós, um Lorde de berço, gracioso e bonito, forte para dominar. Por isso nosso Senhor disse aos judeus que, a não ser que se tornassem humildes e como crianças, não entrariam no Reino dos Céus, que é a morada das almas humildes. Pensamos nas crianças pequenas [p 127] como inocentes e simples, e não humildes; mas é somente ao examinar essa característica das crianças que descobrimos o que a humildade é aos olhos de Deus. Temos apenas dois modelos de humildade para nos guiar—Cristo, pois ‘Ele se humilhou,’ e crianças pequenas, pois Ele as declarou humildes. Um escritor antigo, ao ponderar sobre esse assunto, disse que, assim como existe somente uma Santificação e uma Redenção, assim também há apenas uma Humildade.

A caricatura da Humildade.—Nenhuma graça do coração é tão mal representada em nossos pensamentos como a da Humildade. Chamamos a covardia de Humildade. Nós dizemos—‘Ah, não suporto a dor, não sou tão forte quanto você’; ‘Não posso fazer isso ou aquilo, não tenho a capacidade que os outros têm’; ‘Eu não sou um dos seus amigos inteligentes, de nada me adiantará ler’; ‘Ah, eu não sou bom o suficiente, eu não poderia dar aula na Escola Dominical,’ ou ‘cuidar das coisas da vida espiritual.’ Novamente, o que chamamos de Humildade muitas vezes é, na verdade, hipocrisia. ‘Ah! Eu gostaria de ser tão competente quanto você,’ nós dizemos, ou ‘tão bom,’ ou ‘tão esperto,’ orgulhando-nos secretamente da própria falta de aptidão que de algum modo parece afastar-nos da média geral das pessoas. A pessoa que se exalta nas demonstrações de Humildade geralmente está tentando compensar por algo que desconhecemos e que, de acordo com sua própria opinião, no fim das contas coloca-a acima de nós.

Esse tipo de coisa dá à Humildade uma má reputação. As pessoas acreditam nessas outras que se enganam a si mesmas pensando serem humildes; portanto, embora eles reconheçam que a humildade é uma graça cristã, pouco a estimam e raramente a desejam. Essa ideia equivocada abre as portas para o Orgulho, que vem [p 128] a todo vapor apossar-se da pessoa. Preferimos orgulharmo-nos abertamente de alguma vantagem de nossas circunstâncias ou de nossa origem, e orgulharmo-nos de nossos preconceitos, de termos um temperamento irado ou ressentido, de nossos modos despreocupados, de sermos ociosos, descuidados e imprudentes; mais ainda, o próprio assassino é um homem orgulhoso, orgulhoso da habilidade com a qual pode iludir suspeitas ou destruir suas vítimas. “Eu sempre fui muito reservada, graças a Deus,” disse uma empregada em Londres que não “concordava com os vizinhos.” Talvez não haja uma falta ou um crime sequer que os homens não considerem motivo de honra, algo de que se orgulhar. Poucas são as coisas que conseguimos fazer com simplicidade, isto é, sem termos a consciência de que somos nós que as estamos fazendo, e não nos vangloriarmos disso.

Humildade, sinônimo de Simplicidade.—Muitas pessoas, normais em outros aspectos, chegam à megalomania inicial por meio de uma contínua ampliação do eu. Seus afazeres, seus cães, suas fotos, suas opiniões, suas vocações, suas boas obras, seus ensinamentos, suas convicções religiosas, preenchem todo o campo de visão; mas não pelo valor que todas essas coisas têm em si mesmas, e sim porque lhes dizem respeito. Esse orgulho da vida é tão insidioso e importuno, a necessidade de exaltar o ego nos pressiona tão incessantemente, estraga todas as nossas relações de amizade devido a ressentimentos e reclamações exigentes, que nos resignamos a exclamar: “Oh, miserável homem que sou, quem me livrará?” quando, por um momento, encaramos os fatos. Mas não precisamos nos desesperar, nem mesmo em relação ao nosso abominável Orgulho. Ele nada mais é do que um intruso, um usurpador; o Representante do Coração a quem ele substitui é Humildade; e uma verdadeira concepção deste verdadeiro Representante, que está dentro de nós, é como a pedra do pastor contra [p 129] o gigante. Pois pensar mal de nós mesmos não é ser humilde; isso, quando não é falsidade, é covardia. A Humildade talvez seja uma só coisa com a Simplicidade, e não nos permite pensar em nós mesmos de modo algum, bem ou mal. É por isso que uma criança é humilde. O pensamento de si mesma jamais lhe ocorre e, quando o faz, ela põe fim à sua condição de infância e torna-se o que chamamos de autoconsciência. Naquela maravilhosa primeira lição do Jardim do Éden, a Queda consistiu em nossos primeiros pais se conscientizando de si mesmos; e é assim que todos caímos—quando tomamos consciência.

É bom ser humilde. Pessoas humildes são alegres e boas. Elas não andam com um cachorro preto no ombro ou uma nuvem de trovão na fronte. Todos nascemos humildes. A Humildade está dentro de todos nós, esperando que o orgulho silencie a fim de que ela possa falar e ser ouvida. O que devemos fazer para nos livrar do orgulho e dar lugar à Humildade?

O Caminho da Humildade.—Em primeiro lugar, não devemos tentar ser humildes. Isso consiste em fingimento, e é um tipo ruim de orgulho. Não queremos nos tornar como Uriah Heep, e é isso que acontece quando tentamos ser humildes. O importante é não pensar em nós mesmos, pois se pensarmos no quão ruins somos, estaremos jogando o jogo do Uriah Heep. Existem muitas maneiras de fugir do pensamento de nós mesmos; o amor e o conhecimento de pássaros e flores, de nuvens e pedras, de tudo o que a natureza tem para nos mostrar; quadros, livros, pessoas, qualquer coisa fora de nós nos ajudará a escapar desse tirano que ataca nossos corações. Um plano bastante bom é, quando estivermos conversando ou escrevendo para nossos amigos, não conversarmos nem escrevermos sobre ‘você e eu.’ Há tantas coisas interessantes no mundo sobre as quais se pode conversar que é uma perda de tempo conversarmos sobre nós mesmos. Todavia, [p 130] é bom termos conhecimento de quem e como são esses eus tão tediosos, e por isso você foi convidado a ler esses capítulos. Também é muito bom saber que a Humildade, que não pensa em si mesma, está realmente à vontade em cada um de nós:—

“Se aos olhos de Deus grande

É quem se considera pequeno,

Devemos, por esta lei

Chamar a humildade de graça principal,

A qual, por sê-la, nem sequer se reconhece

Como tal.”

Trench.

[p 131]

CAPÍTULO XI

OS REPRESENTANTES DO AMOR: A ALEGRIA

“Estar alegre é um hábito gracioso.”

“O coração alegre avança o dia inteiro.”

Alegria suficiente para todos no Mundo.—O povo de Yorkshire diz que seu pão é ‘triste’ quando fica pesado, e não cresce. Também é assim conosco. Somos como um pão ‘triste’ quando estamos pesados—quando não nos erguemos nem nos animamos com a luz do sol, tampouco com as vozes de nossos amigos, ou vistas interessantes, com a bondade, o amor ou alguma coisa boa. Quando nós nos animamos com essas coisas, quando nossos corações sorriem por causa de um raio de sol que entra pela janela, ou porque um pássaro está cantando, porque um raio de sol ilumina o tronco de uma árvore escura, ou porque vimos o rosto de uma criança pequena—então estamos felizes. Carlyle, a quem não consideramos um homem muito feliz, costumava dizer que ninguém precisa estar infeliz quando consegue ver um dia de primavera ou o rosto de uma criança pequena. De fato, há Alegria suficiente no mundo para todos nós; ou, para falar mais exatamente, existe uma fonte de Alegria no coração de todos, esperando apenas para ser liberada. As pessoas adultas às vezes dizem que invejam as crianças quando ouvem a Alegria borbulhando em seus corações de tanto rir, assim como borbulha nos pássaros [p 132] cantando; mas não há espaço para arrependimento; é simplesmente como no caso de um riacho barrado: basta que removamos o lixo para que a Alegria flua de um coração cansado de modo tão livre como o faz no coração da criança.

A alegria brota na Tristeza e na Dor.—Mas talvez você dirá: como as pessoas podem se alegrar quando têm que suportar tristeza, ansiedade, carência e dor? Não são essas coisas que interrompem nossa Alegria. A esposa triste e ansiosa de um marido moribundo, a mãe de um filho moribundo, muitas vezes alegrará o quarto do doente com brincadeiras e piadas, transformando-o em um lugar de calorosa alegria. Não é que a mãe ou a esposa tentem parecer contentes pelo bem do sofredor; não há fingimento na Alegria. Sorrisos falsos não atraem ninguém. O fato é que o amor ensina a enfermeira a liberar a fonte de Alegria em seu próprio coração em prol do sofredor querido, e surgem muitas palavras alegres e piadas, sorrisos e alegria, coisas melhores do que qualquer remédio para o doente. Na dor, também, não é impossível ser feliz. Não fomos todos, em algum momento de nossas vidas, tocados por frases alegres que vieram de lábios sofredores? Duvido que Margaret Roper possa ter evitado um sorriso em meio às lágrimas diante das brincadeiras alegres que seu pai, Sir Thomas More, fez a caminho do cadafalso. Nós geralmente cometemos um erro sobre a Alegria. Pensamos nela como uma espécie de sorvete ou chocolate—muito bom quando os comemos, mas não é algo para todos os dias. Mas, “Alegrai-vos cada vez mais,” diz o apóstolo; isto é, “Sede felizes o tempo todo.” Rimos de vez em quando, sorrimos de vez em quando, mas a fonte de alegria dentro de nós deve sempre erguer-se; e assim será se não for impedida.

A alegria é Cativante.—Antes de considerarmos os demônios da alegria, nos certifiquemos de uma coisa. Não podemos nos alegrar sozinhos, e não [p 133] podemos ficar tristes, isto é, pesados, sozinhos. Nossa alegria alegra as pessoas que encontramos, enquanto nosso peso as deprime.

Uma mãe em Londres certa vez me escreveu sobre como levou sua filhinha de dois anos e cabelos dourados para dar seu primeiro passeio, e a garotinha sorriu para o policial, e ele ficou feliz. Ela beijou a mão de algumas lavadeiras francesas que trabalhavam em uma adega, e elas ficaram felizes, e sorriram para a menina, e assim seguia seu caminho como uma pequena rainha distribuindo sorrisos e alegria. Uma história ainda mais bonita foi contada por uma mulher Cristã de uma cidade grande que saiu de casa deprimida pelas ofensas e preocupações sórdidas de seus vizinhos; e uma criança pequena sentada na sarjeta olhou para ela e sorriu; e, com a alegria daquela criança, ela seguiu alegre o resto do dia. Não há nada tão atraente quanto a Alegria, e é bom que cada um de nós saiba que somos capazes de transmitir alegria em função das necessidades dos outros. Mas esse é um tesouro que damos sem perceber, e sem nos empobrecermos por tê-lo doado.

A Alegria é Perdurável.—Agora, se deixamos claro para nós mesmos que existe em cada um de nós uma fonte de Alegria, não uma fonte intermitente, mas uma fonte perene, suficiente e de sobra para cada momento de cada ano mesmo da vida mais longa, sem ser reprimida pela tristeza, dor ou pobreza, mas fluindo, com frequência, brilhante e com a maior força por causa desses obstáculos; se tivermos certeza de que essa preciosa Alegria não é nossa propriedade privada, mas destina-se a enriquecer as pessoas pelas quais passamos na rua, com quem moramos ou trabalhamos ou brincamos, teremos interesse ​​em descobrir por que é que as pessoas andam depressivas, com uma nuvem sombria [p 134] na testa; por que existem pessoas pesadas em movimento, pálidas de semblante, sem graça e impassíveis. Você desejará descobrir por que as crianças conseguem ir a uma festa deliciosa, fazer um piquenique, brincar com feno ou o que seja, e ter um rosto carrancudo durante todo o momento de diversão e da brincadeira; por que os jovens podem ser levados para visitar um lugar ou viajar para outro, e as cenas mais deliciosas podem ficar marcadas com uma mancha negra no mapa de suas memórias, porque não encontram alegria nelas; por que as pessoas de meia idade às vezes andam com expressões tristes e sérias; por que os idosos às vezes pensam que carregam somente cruzes e nenhuma alegria.

Essa questão de alegria ou tristeza tem pouco a ver com nossas circunstâncias. É verdade que faremos bem se seguirmos os conselhos de Marco Aurélio: “Não deixe sua cabeça se encher com aquilo que não está sob seu controle, mas escolha algumas das melhores circunstâncias nas quais você se encontra, e considere com que avidez você as desejaria se elas não estivessem em sua posse.”

Ficamos Tristes quando sentimos Pena de Nós Mesmos.—Tiremos o bom proveito de nossas circunstâncias por todos os meios, mas, na verdade, não são nossas circunstâncias, mas nós mesmos, que sufocamos a fonte. Ficamos tristes e não contentes porque sentimos pena de nós mesmos. Alguém pisou no nosso pé, alguém disse a palavra errada, de alguma forma ofendeu nosso senso de importância pessoal, e ei-lo! o Demônio da autopiedade cava com diligência a sua pilha de lixo e lança sobre nós todo tipo de coisa pobre e insignificante para controlar o fluxo da nossa fonte de Alegria. Algumas pessoas sentem pena de si mesmas por alguns momentos, outras por dias, e outras carregam toda a vida um ressentimento contra as próprias circunstâncias ou queimam por dentro com ressentimento contra os amigos.

[p 135]

Alegria, um Dever.—Basta que olhemos esse assunto de frente para ver como é triste e errado não ficar alegre, e dizermos para nós mesmos: ‘Eu posso, porque é o que devo fazer!’ A ajuda chega àqueles que por ela se esforçam e que a pedem. Podemos ter que nos erguer muitas vezes ao dia, mas cada vez que conseguimos expulsar a depressão, se torna mais fácil sermos alegres e bons. O sinal externo e visível de alegria é a alegria em si, pois, de que modo um rosto severo e um discurso amargo poderiam acompanhar uma alegria interna borbulhante? A graça interior e espiritual é o contentamento, pois de que maneira a pessoa que está feliz em seu coração aparentaria estar insatisfeita com as pequenas coisas externas da vida? “Regozije-se cada vez mais, e de novo eu insisto: regozije-se.”

[p 136]

OS LORDES DO CORAÇÃO: II. JUSTIÇA

CAPÍTULO XII

JUSTIÇA, UNIVERSAL

Devemos conhecer as Funções do Amor e da Justiça.—Dissemos que dois personagens poderosos mantêm o poder na Câmara do Coração—o Amor e a Justiça. E uma questão nos ocorre, as reivindicações dos dois não se colidem? Às vezes. O Amor se inclina à indulgência e fere onde deve sustentar. A Justiça se inclina à severidade e repele onde deve vencer. Portanto, é necessário que pensemos nessas coisas e conheçamos as várias partes do Amor e da Justiça pelo menos com o mesmo cuidado que deveríamos ter com um verbo grego ou um problema de Euclides. De fato, podemos viver sem estes últimos, mas o Amor e a Justiça são inseparáveis do Reino de Alma Humana; eles estão lá, e devemos contar com eles. Não que eles sejam como rodas auto-dirigidas, por assim dizer, que dão certo, querendo ou não. Pelo contrário, esses Lordes de berço exigem a supervisão contínua do Primeiro Ministro, ele próprio governado pelo Poder Superior; e sem essa visão geral, produzem emaranhados na vida dos homens.

Todos têm Justiça em seu Coração.—Já consideramos os caminhos do Amor e os vários ofícios de seus representantes. Vamos agora pensar [p 137] na Justiça, e quem são aqueles cercando seus assentos e cumprindo seus mandatos. Primeiro consideremos nossa riqueza. É grandioso saber que não existe uma Alma Humana no mundo que não tenha Justiça em seu coração, por mais mesquinha que seja, desapreciada, negligenciada ou selvagem. Um pedido de “jogo justo” chegará à multidão mais escassa de leis. O ‘não é justo,’ acontece a todos. Nações diferentes têm noções diferentes sobre o caminho, mas o jogo limpo para si e para os outros é a demanda do coração de todo homem.

Não Devo Ferir Ninguém por Palavra ou Ação.—A Justiça exige que tomemos cuidado constante todos os dias para ceder seus direitos para todas as pessoas com quem entramos em contato; isto é, “fazer aos outros como gostaríamos que eles fizessem a nós: machucar a ninguém por palavra ou ação”; portanto, devemos demonstrar gentileza com as pessoas de outros, cortesia com suas palavras e deferência com suas opiniões, porque essas coisas são devidas. Devemos ser verdadeiros e justos em todas as nossas negociações. Veracidade, fidelidade, simplicidade e sinceridade devem, portanto, direcionar nossas palavras. A sinceridade, a apreciação e o discernimento devem guiar nossos pensamentos. O negócio justo, a honestidade e a integridade devem governar nossas ações.

Devo ser Justo com Todas as Outras Pessoas.—Essa justiça às pessoas, propriedades, palavras, pensamentos e ações de outras pessoas, devo mostrar aos meus pais, professores, governantes e todos os que têm autoridade sobre mim e sobre meu país, porque é direito deles e meu dever. Do mesmo modo, devo ser justo com as palavras, pensamentos e ações de meus irmãos, irmãs, amigos e vizinhos, e todos os outros que são meus iguais, em minhas próprias palavras, pensamentos e ações. Também devo ser justo, em palavras, pensamento e ação para com os servos, para todas as pessoas que são empregadas por mim ou pela minha família, para todos os que trabalham para [p 138] mim, seja em minha própria casa ou fora. Devo ser reto, isto é, justo com todas as pessoas cujas opiniões e modos de vida diferem dos meus, mesmo com todos os que ofendem as leis de Deus e do homem. É meu dever ser justo assim com as pessoas, a reputação e a propriedade de todas as outras pessoas, na medida em que eu tenha algo a ver com elas. Portanto, “não devo ter maldade ou ódio no coração, devo evitar que minhas mãos peguem e roubem, minha língua fale mal, minta e calunie,” e “não devo cobiçar nem desejar os bens de outros homens, mas devo aprender e trabalhar verdadeiramente para conseguir minha própria vida e cumprir meu dever neste estado de vida ao qual agradou a Deus me chamar.”

Somos Capazes de Pagar as Taxas da Justiça.—É bastante claro que pensar de maneira justa, falar com sinceridade e agir com justiça em relação a todas as pessoas, em todos os momentos e em todas as ocasiões, que é nosso dever, é uma questão que exige sincero pensamento e consideração—é, de fato, o estudo de uma vida. Podemos ficar um pouco desanimados com o pensamento de quanto nos é devido a todos os nossos vizinhos em qualquer lugar, se não fosse a Justiça que mora dentro de nós, pronta para governar; e que os Lordes que compõe a sua corte aguardam suas ordens. Pureza, sinceridade, simplicidade, integridade, fidelidade e o restante são servos do nosso comando, e o que temos a fazer é encontrar o caminho no Circuito da Justiça, reconhecer os deveres dos outros quando eles vierem antes de nós, e eis! temos sempre em mãos a moeda do reino da justiça com a qual pagamos as dívidas de todos os nossos vizinhos. É uma grande coisa saber disso; ser capaz de andar rico nas ruas de nossa Alma Humana e saber que temos com o que pagar o nosso caminho em todas as mãos. Muitas pessoas pobres de alma tornam-se [p 139] indigentes; elas têm toda a cunhagem de justiça, mas não a conhecem e, portanto, não a usam. Elas são cegas porque fixam o tempo todo seu olhar em seus próprios direitos e nos deveres de outras pessoas; portanto, elas não conseguem ver os direitos de outras pessoas e seus próprios deveres; isto é, elas não conseguem ser justas.

Nossos Próprios Direitos.—Você pergunta: Não temos direitos então, e outras pessoas não tem deveres para conosco? De fato, temos direitos, precisamente os mesmos direitos que as outras pessoas têm, e quando aprendemos a pensar em nós mesmos como um dos demais, possuindo os mesmos direitos que as outras pessoas e nada mais, a quem os outros devem exatamente os deveres que devemos a eles e nada mais, conseguiremos, por assim dizer, colocar nossas vidas em foco e ver as coisas como elas são. Há uma parábola maravilhosa na história sobre o homem que primeiro foi cego e não via homem algum, e depois teve os olhos parcialmente abertos e via homens como árvores andando, e por fim foi abençoado com a visão completa de outras pessoas como elas são.

[p 140]

CAPÍTULO XIII

JUSTIÇA PARA COM AS PESSOAS DOS OUTROS

Começamos a entender esse Dever.—O leitor pode ter ouvido com tristeza a história daquele jovem oficial alemão que recentemente caiu em um duelo na véspera do dia do casamento. Não faz muito tempo que, na Inglaterra, os homens também achavam correto exterminar um pequeno delito pela morte do ofensor ou do ofendido. Agora, entendemos que não é correto ferir alguém por causa de uma ação. Mestres não podem derrotar seus aprendizes, nem senhoritas as suas criadas; de fato, tentamos, como nação, fazer com que todas as pessoas tratem a pessoa dos outros, com respeito. As crianças também ganharam com esse senso mais verdadeiro de justiça para com a pessoa de cada um. Seus corpinhos estavam sujeitos a muitas surras, ‘beliscões, apertões e safanões,’ daqueles que tinham autoridade sobre elas. Pensava-se que era bastante saudável para elas serem alimentadas com pão e água, ou serem colocadas dentro de um armário escuro quando eram malcriadas. Mas agora, a pessoa de cada criança recebe muito amor e raramente essas crianças são castigadas. Isso ocorre porque as pessoas começam a ver, e estão ansiosas para fazer, tudo o que a Justiça exige. Ainda existem países onde as pessoas não vêem mal em machucar outras pessoas. Recentemente, lemos sobre um bandido no sul da Itália, que havia matado vinte e sete pessoas—não porque ele quisesse o dinheiro ou [p 141] bens delas, e nem porque essas pessoas o teriam machucado, mas porque um parente delas havia, anos antes, matado seu irmão. Este homem acreditava que sua vingança era justa. Ele tinha noção de Justiça, mas equivocada; e um incidente como esse mostra como é necessário que a instrução nos ajude a pensar claramente na difícil questão do que é justo. Existem poucas coisas sobre as quais as pessoas cometem mais erros.

Pensar de maneira justa requer Conhecimento e Consideração.—Pensar de maneira justa sobre os direitos pessoais dos outros exige uma grande quantidade de conhecimento e também de julgamento. Mas todos podemos chegar a algumas conclusões certas solicitando a ajuda da Imaginação. Aquele garoto não é nada menos do que um bom sujeito quando percebe o amor de sua mãe pela beleza da limpeza; quando lembra que as criadas têm o suficiente para fazer com seu trabalho regular; que trabalho suficiente faz as pessoas felizes, enquanto em excesso estraga suas vidas; e, quando, esse garoto pensa sobre essas coisas, toma cuidado com pequenos assuntos, a ponto de limpar os pés quando ele entra, confinar suas bagunças em seu próprio quarto, evitar deixar rastros de lama, rasgos e danos mostrando onde ele esteve, porque ele sabe que esse tipo de imprudência estraga o conforto e aumenta o trabalho de outras pessoas. A jovem que pensa na pessoa dos outros não vai apressar a costureira para fazer um novo vestido de festa, que deve estar pronto até tal data, mesmo se as assistentes da costureira tiverem que sentar até meia-noite para fazê-lo. Ela usa sua imaginação e vê, por um lado, meninas com rostos pálidos e olhos cansados; e, por outro, garotas brilhantes costurando com interesse e prazer pelo belo vestido. De fato, esse tipo de cuidado para não [p 142] causar danos corporais a outras pessoas deve nos guiar em muitos dos assuntos da vida—por exemplo, deveria nos proibir de comprar nas lojas mais baratas; muito provavelmente, alguma classe de trabalhadores foi explorada para produzir o artigo barato. Um bom senso do valor das coisas nos ajuda muito a levar uma vida justa.

As Pessoas feridas na Mente sofrem no CorpoBrandura.—Mas há outras maneiras de causar danos corporais às pessoas com as quais temos que lidar, além do excesso de trabalho, subnutrição ou uso indevido delas. Se você machuca as pessoas na mente, elas sofrem no corpo, e é por essa razão que não devemos empurrar a multidão para conseguir o melhor lugar—não devemos empurrar os outros para obter a melhor parte do que está acontecendo, mesmo que seja um bom sermão, devemos dar passagem gentilmente ao andar pelas ruas, devemos abrir espaço em assentos públicos ou em carruagens para outros que desejam sentar-se. Se não formos cuidadosos em assuntos tão pequenos, podemos não causar dano direto às pessoas a tal ponto que se torne necessário uma cirurgia, mas produziremos um estado de preocupação e desconforto mental o qual é realmente mais desgastante. Todos sabemos como é reconfortante a presença de uma pessoa gentil em uma sala; uma pessoa cujo tom de voz e cujos movimentos mostram que ela tem imaginação, que ela percebe a presença de outras pessoas cujo conforto ela não iria destruir voluntariamente. Os Demônios aos quais nos instigam e nos fazem ser injustos com as pessoas dos outros são geralmente Falta de Consideração, Egoísmo e Crueldade.

Uma Palavra pode machucar tanto quanto um GolpeCortesia.—Tendo em mente como é fácil ferir o corpo de outras pessoas através de suas mentes, começamos a ver que uma palavra pode machucar tanto quanto um golpe, que a falta de cortesia pode causar tanto dano a outra pessoa quanto a [p 143] falta de comida. Quando vemos isso, somos corteses com as palavras dos outros; ouvimos, não contradizemos, tentamos entender; e, quando outras pessoas expressam suas opiniões, por mais que possam diferir daquelas em que fomos criados, nos mantemos longe da violência em pensamentos e palavras, e ouvimos com deferência onde não podemos concordar. Então, quando declararmos nossas noções com gentileza e modéstia, descobriremos que elas serão gentilmente recebidas.

Não somos livres para pensar Mal sobre os Outros.—Não podemos ‘correr descontrolados’ pelo mundo! Enfrentar de cabeça, com todo nosso vigor, batendo de frente com qualquer coisa que estiver em nosso caminho, pode ser convidativo, mas não resulta em nada. Ninguém nasce um vândalo; aquela Justiça nobre de nossos corações está sempre sobre nós pelas reivindicações de outras pessoas; e tendo considerado essas pessoas, despertamos para o fato de que todos eles têm reivindicações sobre nós em relação a seu caráter e reputação. A maioria de nós sabemos que não somos livres para pensar o que quisermos sobre nossos pais ou outros superiores, de nossa escola ou lugar de trabalho. Alguns de nós não nos permitimos pensar coisas desagradáveis ​​sobre nossos irmãos e irmãs, servos ou outros moradores de nossa casa. Ainda há alguns que são cuidadosos com pensamentos sobre conhecidos e relações externas; mas, fora isso, a maioria de nós se sente livre para pensar o que quisermos sobre os personagens de pessoas de fora da nossa vida diária, seja do homem que fabrica nossos sapatos, ou do estadista que ajuda a nos governar, ou de um conhecido de outro grupo.

Justiça ao Caráter dos Outros.—A Justiça, mantendo a corte dentro de nós, ordena que devemos pensar de maneira justa sobre todos, perto ou longe, acima ou abaixo de nós. [p 144] Quando resolvemos pensar de maneira justa, ela tem seu grupo de servidores sob nosso comando, cuja tarefa é atender a essa questão e vir quando são chamados.

Sinceridade.—A Sinceridade está ao nosso lado e mostra-nos óculos de poder incomum, para aproximar coisas distantes e tornar claras as coisas escuras. Usando esses óculos, podemos ver o outro lado da questão. Vemos que o Sr. Jones pode ser desagradável, mas, mesmo assim, ele está tentando cumprir seu dever. Aquele garoto usava os óculos sinceros quando (segundo a história) escreveu uma carta sobre seu Mestre: “Temple é um animal, mas ele é um animal justo.” Seu sincero colega de escola vê que Brown não é um furtivo, mas um garoto tímido, ansioso para seguir em frente. A Sinceridade ressalta que o comentário irritante da senhorita Jenkins não foi rancoroso, mas apenas embaraçoso; que até os políticos têm um desejo consciente de fazer o melhor possível; que o pastor provavelmente tenta praticar o que ele prega; que muito provavelmente o encanador muito abusado se interesse por seu trabalho e se preocupe em fazer um bom trabalho; e que, mesmo supondo que a pessoa em questão não tenha a intenção correta e não faça nenhum esforço digno, devemos ter pena; e, se possível, ajudar, porque nesse caso as coisas devem ter estado contra ela a vida toda. Sinceridade nos mostra que um francês, um alemão, um russo, tem qualidades melhores que John Bull; que um Whig ou um Tory, qualquer um que seja, tem algo a ensinar ao seu oponente. Mas a Sinceridade não toma partido. Ela não diz para si mesma: ‘Minha família, meu país, meu partido político, minha escola, certamente estão sempre certos e são as melhores opções,’ porque ela sempre vê que o outro lado, seja ele a família, escola ou o país, pode ter algo a dizer que vale a pena [p 145] ouvir. Justiça sempre é a palavra de ordem da Sinceridade, e isso a torna no final a mais firme defensora do lado a que ela pertence.

Preconceito.—Oposto a Sinceridade é o Preconceito, que também oferece a você um par de óculos; mas estes não são claros e abertos à luz do dia, mas são de cor rosa ou preto, verde ou amarelo, conforme o caso. Não podemos ver as pessoas como elas são através desses óculos, mas uma pessoa é negra, outra rosada como o amanhecer, outra de um verde doentio ou um amarelo do mal, conforme a afeição, inveja, ódio ou ciúme criam um preconceito em nossas mentes, através do qual não podemos julgar justamente o caráter dos outros. As pessoas não podem ser sinceras e se permitirem ser preconceituosas, seja a favor das pessoas de quem gostam ou contra as que não gostam. De fato, a antipatia é o próprio Preconceito; e o amor verdadeiro é bem claro e sincero. Há beleza suficiente nas pessoas que amamos, o suficiente nas causas que tomamos, para permitir-nos deixar a luz do dia cair sobre elas e dispensar os óculos cor de rosa.

Não teremos o amor por nosso país chamado de ‘Jingoísmo’ se o amarmos com um amor sincero. Nosso país é grande e glorioso, capaz de suportar a luz do dia. Mas, e o ‘amigo sincero,’ a pessoa que vê que a Inglaterra está indo a ruína; que nós mesmos somos coisas pobres, constituídas em geral por uma única falha de caráter? A Inglaterra, como outros países, precisa se suavizar; provavelmente temos essa falta de caráter, podemos ser arrogantes ou preguiçosos, egoístas ou o que for; mas onde nosso ‘amigo sincero’ erra é participar de um todo e aumentar uma falha ou fraqueza, para que não haja mais nada a ser visto. Temos algo a aprender com ele, embora ele não concorde conosco; mas, [p 146] para nós, devemos usar os óculos da Sinceridade, que trazem a paisagem inteira e devido alívio.

Respeito.—A Sinceridade nunca age sozinha; no seu braço direito está aquele outro servo do Lorde Justiça—O Respeito. Ninguém pode ser justo se não segue o preceito apostólico: “Honre todos os homens.” Estamos inclinados a objetar que honramos aqueles que são dignos de honra; mas essa é outra maneira de dizer que destacamos pessoas aqui e ali em quem pensaremos com justiça; mas todo homem e toda criança reclama nossa honra, não apenas por causa da irmandade comum que existe entre nós, visto que somos todos filhos de um Pai, mas porque Amor e Justiça, Intelecto, Razão, Imaginação, todos os soberanos governantes da Alma Humana estão presentes, mesmo que adormecidos, em todos os homens que encontramos. É honrando todos os homens que descobrimos o quanto eles são dignos de honra. Podemos ver os defeitos um do outro à luz branca da sinceridade, mas essa mesma luz branca nos mostrará que uma falha, por mais tentadora que seja, não é de modo algum a pessoa inteira, e que há belas qualidades na natureza mais pobre que ainda assim chamam nossa reverência. Raramente jornais diários revelam a glória insuspeita de uma alma humana. A honra gera gentileza para as pessoas dos outros, atenção cortês às suas palavras, por mais enfadonhas e banais que possam parecer para nós, e deferência em relação às suas opiniões, por mais tolas que as possamos pensar. A pessoa cujas opiniões precipitadas são recebidas com deferência está pronta para ouvir o outro lado da questão e fica aberta à convicção.

Vaidade.—Por que não honramos uns aos outros? Porque nossa visão é cega por uma imagem esculpida de nós mesmos. Estamos tão preocupados em pensar em nós mesmos que não podemos ver a beleza [p 147] daqueles que nos cercam, embora possamos admirar pessoas afastadas de nós. Vaidade e auto-absorção são os Demônios que nos impedem de dar essa honra devida a todos os homens.

Discernimento.—Veja agora como os servos da justiça se apoiam! A Sinceridade, como vimos, é acompanhada do Respeito, e o Respeito é apoiado pelo Discernimento. As pessoas falam sobre ser enganadas nisto e naquilo, e ouvimos muito sobre afeto desapontado e sobre amigos indignos; mas tudo isso é desnecessário. Em toda Câmara do Coração, está aquele modesto servidor da Justiça, a quem chamamos Discernimento. Deixe-o ter liberdade, sem ser impedido por Vaidade ou Preconceito, e ele trará a você um relatório bastante preciso do caráter de todos com quem você entra em contato. Ele mostrará, igualmente, falhas e virtudes em outros, o bem e o mal. Além disso, ele o deixará ver com seus óculos sua própria Alma Humana e permitirá que você veja que, embora alguém tenha virtudes e defeitos, os defeitos podem ser do tipo que seria uma armadilha e tentação para você, e que portanto, essa pessoa não está preparada para a sua amizade. Por falta de Discernimento de caráter, muitas pessoas destroem suas vidas se unindo a outra, não por amor de Deus, mas porque as duas têm as mesmas falhas. Devemos honra a todos os homens; mas o Discernimento entra em cena para nos ajudar a fazer Justiça a nós mesmos e escolher para nossa intimidade ou serviço, aquela pessoa cujo caráter deve ser uma força para os nosso caráter.

Apreciação.—Caso o Discernimento em seu zelo se torne muito agudo para ver o que está errado, outro servo da Justiça, requintado e delicado como Ariel, está à disposição para ficar ou ir com ele. É a [p 148] Apreciação, cuja tarefa é pensar e considerar, de maneira adequada e delicada, os méritos, as boas qualidades de uma pessoa, um país, uma causa, um livro ou uma imagem. A Apreciação é uma ótima residente da Câmara do Coração e está continuamente trazendo reuniões alegres. É tão bom e agradável notar uma característica de altruísmo aqui, de delicadeza ali, de honra em outros lugares; observar e valorizar o registro da beleza da perfeição na obra de qualquer homem, seja ela um grande poema ou a limpeza de uma sala. É uma alegria distinguir belezas peculiares de outro país e encontrar traços de caráter que diferem dos nossos em pessoas de outra nacionalidade. A vida não tem maior doador de alegria do que a Apreciação, e embora essa Apreciação seja devida a outros e seja nosso dever para com eles, obtemos mais do que damos, pois não há prazer mais puro do que ver o bem em tudo, e a beleza em todo mundo.

Depreciação.—Depreciação é o desdenhoso Demônio que está prestes a expulsar esse servidor genial da Justiça. Há pessoas para quem nem o clima nem o jantar, nem a morada nem a companhia são bons o suficiente. Você observa quando eles descem: ‘Que manhã linda!’ Eles respondem: ‘Sim, está tudo bem hoje,’ com uma referência depreciativa a um dia passado. ‘Que mulher legal, a sra. Jones!’ ‘Sim, se ela não usasse roupas tão terríveis.’ ‘Gostei muito da Floresta Negra.’ ‘Ah, é mesmo? sempre há tantos alemães nos hotéis.’ E assim continua a pessoa depreciativa, que se move pelo mundo como uma lula, pronta para manchar as águas que a cercam. É bom lembrar que Depreciação é Injustiça. A observação depreciativa pode ser verdadeira [p 149] na carne, mas é falsa em espírito, porque considera uma parte como sendo o todo, um único defeito dentre muitas excelências. A Depreciação pode ser inspirada no monstro Inveja, que está sempre prestes a colocar obstáculos no caminho da Justiça e menosprezar as reivindicações de outros; ou pode surgir da Descuido em Pensamento, que é apenas uma forma de Auto-ocupação. Muitas das críticas grosseiras e indignas que ouvimos sobre livros, gravuras, discursos, uma música, uma festa, surgem dessa última causa. Não nos permitiríamos depreciar se recordássemos que a Apreciação é uma parte da Justiça que devemos ao caráter e às obras de outros.

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CAPÍTULO XIV

VERDADE: A PALAVRA JUSTA

A verdade não é Violenta.—Se nossos pensamentos não são, propriamente ditos, nossos, e se o que pensamos dos outros é uma questão de Justiça ou de Injustiça, também certa gentileza nas palavras é devido a todos aqueles com quem falamos; e se não o fizermos, somos injustos com nossos próximos. Se dissermos algo falso a outro e formos acreditados, nosso próximo tem o direito de se zangar conosco; mas, se ele não acreditar, tem o direito de nos desprezar. Causamos-lhe uma ferida, talvez não fisicamente, mas à mente e à alma, que ficam magoadas e ressentidas sob tal ofensa, da mesma maneira que nosso corpo fica machucado e dolorido após um golpe. É muito provável que um ‘campeão’ profissional se acostume a contusões; da mesma forma, uma pessoa que se dispõe a ouvir e ler o que é falso aprende a pensar injustamente, e inevitavelmente falará falsamente, mesmo que não conte mentiras de maneira intencional. A verdade está em toda a Alma Humana, servindo a Justiça; mas a verdade nunca é violenta, e há muitos clamores à disposição para abafar sua voz. Cabe a nós escolher a quem devemos ouvir.

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‘Calúnia,’ de Botticelli.—Há uma pintura[1] na Galeria de Uffizi, pintada por Sandro Botticelli—numa ocasião de tristeza e raiva justa pelo martírio de seu amigo e professor, Savonarola—onde você observa o clamoroso elenco que sufoca as palavras da verdade. Entretanto os personagens são surpreendentes. Você espera que o pintor descreva esses Demônios como bruxas enrugadas, feias e proibitivas. Nenhum de nós, se ofenderia caso o pecado se apresentasse em forma odiosa; mas Botticelli, recriando uma pintura do antigo pintor grego Apelles, coloca em primeiro plano uma jovem e bela dama, com um manto azul celeste sobre uma túnica branca de inocência, mas que revela através de fendas, trajes negros por baixo. Ela parece calma e abaixa os olhos como se estivesse arrependida, enquanto com a mão direita arrasta, pelos cabelos, a figura nua e prostrada da Inocência. Esta é a Calúnia.

De ambos os lados, há duas outras lindas donzelas, vestidas em trajes legítimos, aparentemente arrumam os cabelos de Calúnia, mas na verdade sussurram em seus ouvidos. A primeira é a Insídia, que por palavras suaves e persuasivas faz as mentiras de Calúnia parecerem a verdade; e a outra é a Inveja, igualmente bela, pois a Inveja dos outros sempre toma a aparência de Equidade e Justiça para nós.

Segurando o pulso esquerdo de Calúnia está a figura sombria e encapuzada de Traição, que estende a mão para o rei Midas em seu trono, a fim de exigir uma audiência. Os longos ouvidos mostram o caráter desse rei, pois, a Falsidade e sua equipe, Calúnia, Inveja e o restante, são, afinal, tão somente Tolice. Suspeita sussurra em um dos longos ouvidos de Midas, e Preconceito no outro, [p 152] e o rei inclina seu ouvido ora para um e, ora para o outro, de forma que suas palavras sejam os únicos sons que podem alcançá-lo. O ato da pintura ocorre em uma bela galeria, ricamente decorada com esculturas, pois não é em lugares onde os homens trabalham duro e vivem com simplicidade que Calúnia e seus ministros prosperam. Bem ao fundo está a Verdade nua, pura e bela, desviando seus olhos do espetáculo maligno e erguendo a mão ao céu, certa de uma audiência ali; e entre ela e a torturada Inocência está a figura sombria de Remorso. Seria bom manter uma cópia dessa imagem diante de nossos olhos, não somente em razão de sua beleza, mas, porque ela deveria nos fazer ponderar sobre muitas coisas: que toda a corja de Falsidade, Calúnia, Inveja, Tolice, Preconceito, Suspeita chegam até nós em lugares agradáveis e de maneiras insidiosas; que elas torturam os inocentes e afastam a sagrada Verdade pelo ruído de muitas vozes em nossos ouvidos.

Calúnia.—A verdade pode ser afastada, mas ela ainda está lá; e precisamos manter quieto o coração para ouvir suas palavras e a língua obediente para pronunciá-las. Calúnia, todos sabemos, é falar palavras difamatórias sobre outras pessoas. Devemos impedir que nossas línguas difamem, mintam e caluniem; e Wesley diz que maldizer o outro quando é verdade, é difamar, e quando é falso, é mentir. A maioria das pessoas tem o cuidado de valorizar a Verdade em tudo o que dizem a respeito das pessoas de suas próprias casas, mas quantos de nós, somos igualmente cuidadosos ao falar daqueles que moram ao lado ou na próxima rua? É tão fácil dizer que Jones é sorrateiro, e que Brown é um cafajeste, que a Sra. Jones não alimenta seus servos adequadamente ou que a Sra. Brown não veste seus filhos devidamente; que Minna copiou a tradução [p 153] de Maria, que Harrison não se esforça o suficiente. Sentenças como essas, sobre as pessoas com quem lidamos, são proferidas de forma superficial, muitas vezes sem intenção; mas, dois fatos ocorreram—o caráter de nosso vizinho foi ferido; e a Verdade, talvez a moradora mais bonita da Câmara do Coração, também sofreu um dano em nossas mãos.

Insídia e Inveja.—Mas nem sempre é por falta de consideração que deixamos a Insídia nos convencer das inverdades que, aos poucos, falamos. A Inveja é um Demônio sempre presente, pronta com uma palavra caluniadora para aqueles que nos superam. Se eles dançam melhor, não queremos dançar, e dizemos que eles perdem muito tempo com isso. Se eles se vestem melhor, é porque gastam muito dinheiro e tempo pensando em suas roupas. Se eles falam melhor, a Inveja diz que é pretensão. Se eles são mais bonitos do que nós, Inveja diz que a beleza é superficial, e não há nada de mais em um rosto bonito se a mente estiver vazia. Na Idade Média, as pessoas temiam a Inveja e a consideravam um dos sete pecados capitais. Agora, esquecemos que existe esse mal; e quando nos permitimos pensamentos de despeito sobre as posses ou vantagens dos outros, dizemos: ‘Não é justo’; isto é, cobrimos nossa injustiça para com os outros com um manto que chamamos de justiça e equidade para nós mesmos. Entretanto, enganamos a nós mesmos, e todo pecado do engano nos incapacita de expressar a verdade.

Calúnias que lemos e ouvimos.—Não é apenas através de conversas caluniosas que a Verdade é ferida. Escutar ou ler calúnias podem matá-la; e uma regra simples nos ajudará a discernir qual é a maneira caluniosa de [p 154] falar e ler. A verdade nunca é violenta; e o jornal ou revista, ou livro, a festa ou o discurso público, que faz acusações fortes e amargas contra o outro lado, podemos ter certeza de que estão sendo, no momento, caluniosos; e, se nos aprofundarmos em tais falas ou leituras, o castigo que virá sobre nós é que nos tornaremos incapazes de discernir a Verdade e nos alegraremos em maldizer.

Fanatismo.—Isso é o que acontece às pessoas quando elas se tornam fanáticas. Não é que elas não acreditem no que é dito pelo outro lado, mas que não podem; elas perderam a capacidade; e os esforços para convencê-las são inúteis. Um homem pode ser fanático pela paz ou pela guerra, fanático pela religião ou pelo ateísmo. De fato, é triste que causas boas e más possam ter seus fanáticos, que prejudicam o que apóiam em razão da sua incapacidade de considerar mais de um lado de um problema. Uma boa causa também pode ter seus mártires; mas um mártir não é uma pessoa barulhenta; ele sofre, mas não grita pela causa que tem no coração. Foi bom e revigorante, depois do clamor calunioso da imprensa de ambos os lados e em vários países, encontrar um livro de um oficial britânico em que a coragem e a resistência de Boer e Briton foram devidamente honradas, e as mulheres bôeres que seguiram seus maridos nas trincheiras foram mencionadas com amabilidade e reverência. Existem poucos equipamentos melhores para um cidadão do que uma mente capaz de discernir a Verdade, seja do nosso lado do partido ou do lado dos nossos antagonistas. Mas essa mente justa só pode ser preservada por aqueles que atentam-se ao que ouvem e como.

O Soberano Bem.—“Mas, de qualquer maneira,” como afirma Bacon, “essas coisas estão nos julgamentos e afetos pecadores [p 155] dos homens; contudo, a Verdade, que apenas pode julgar a si mesma, ensina que a investigação da Verdade, que é o ato de amá-la, ou cortejá-la; o conhecimento da Verdade, que é a presença dela; e a crença na Verdade, que é o gozo dela; é o bem soberano da natureza humana.”

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CAPÍTULO XV

VERDADE FALADA

Ainda não chegamos a discutir o ‘falar a verdade,’ porque ninguém pode dizer a Verdade quando não a vê e a conhece em seu coração, e quando não acredita, como dizia o Sir Roger de Coverley, que “há muita coisa a ser dita em ambos os lados” da maioria das questões.

Veracidade.—Primeira entre as servas da Verdade, digo, a Verdade falada, é a Veracidade—o hábito de deixar que nossas palavras expressem o fato exato, tanto quanto o conhecemos. Tendo falado o que acreditamos ser o fato, evitemos qualificações. Não digamos: ‘Pelo menos eu acho,’ ‘Pelo menos eu acredito,’ ‘Talvez não fosse assim,’ ‘Todas as meninas estavam lá, bom, pelo menos algumas delas,’ ‘andamos umas dez milhas, quero dizer, pelo menos seis;’ essas qualificações implicam uma falta de Veracidade; somos condenados por uma declaração vaga e tentamos acalmar nossa consciência por um excesso de escrupulosidade que tem o efeito de fazer nossos ouvintes duvidarem da Verdade que falamos. Mas o que devemos fazer quando, depois de dizer algo, começamos a duvidar se é verdade? As palavras ditas uma vez devem ser deixadas em paz: é inútil dizer, qualificar, explicar ou alterar, ou apelar por confirmação ou negação a outra pessoa. Quando pensamos quão finais as palavras são, temos [p 157] o cuidado de não nos apressarmos em declarações sem conhecimento; não entraremos em casa com um clamor: ‘Mãe! mãe! há mil gatos no jardim.’ ‘Há George? Você os contou?’ ‘Bem, de qualquer forma, tem o nosso gato e um outro!’ Precisamos ter certeza de nossos fatos antes de falarmos e evitar falar sobre assuntos sobre os quais temos apenas o conhecimento mais vago. As pessoas estão muito aptas a assumir na conversa um conhecimento íntimo de questões de literatura e arte, por exemplo, sobre as quais sabem muito pouco.

Escrupulosidade não é Veracidade.—Ao mesmo tempo, é bom lembrar que a Escrupulosidade não é Veracidade, e que pôr um fim à conversa por escrupulosidade cansativa não é o comportamento de uma pessoa verdadeira. Pode-se evitar uma falsa suposição de conhecimento sem ter que dizer ‘eu não sei’; uma observação inconveniente para a outra pessoa.

Outro tipo de Escrupulosidade se torna muito cansativo em conversas. Alguém diz: ‘vi sete homens na pista’ e a pessoa escrupulosa o corrige com: ‘desculpe-me, acho que eram seis homens e um jovem.’ ‘Eu conheci o Sr. Jones na terça-feira’ e a correção é: ‘Acho que, se você se lembra, foi na quarta-feira.’ ‘O tempo estava ótimo a semana toda’ Correção: ‘acho que não; houve uma chuva fina na quinta-feira’; e assim por diante, para distração; pois há poucos hábitos que acabam com mais êxito a conversa, do que o distintamente arrogante hábito de cuidar da Veracidade de outras pessoas em assuntos que não são de muita importância. A mínima educação exige que assumamos a boa fé do orador; e, assumindo-se, não é de menor importância se havia dez ou doze pessoas no campo de feno, se um rebanho de [p 158] ovelhas passava na estrada, numerado oitenta ou cem. A veracidade exige que falemos o fato, tanto quanto o conhecemos, e que nos esforcemos para não falar sobre o que não sabemos; mas, de maneira alguma, exige que acompanhemos a conversa de outras pessoas e corrijamos suas informações por meio de nossas próprias, provavelmente até menos precisas.

Exagero.—Outro desvio mais ou menos casual da Veracidade vem do hábito do Exagero. Temos ‘mil coisas para fazer’: talvez tenhamos quatro; ‘todo mundo diz isso,’ o que significa que nossas amigas Sra. Simpson e Mary Carter disseram isso, ou talvez apenas a Sra. Simpson. Poucos chefes de família não conhecem a tirania cansativa de—‘Sempre fazemos isso e aquilo’: provavelmente já o fizemos uma vez. No caso de doença, guerra, calamidade, as pessoas estão ansiosas para falar ao máximo sobre o pior do que aconteceu, e as manchetes do jornal que mostram o maior número de infortúnios são citadas com mais frequência e mais facilmente acreditadas, embora amanhã podem mostrar-se falsas. Não podemos manter o delicado senso da Verdade se nos permitirmos ouvir e transmitir boatos. Usemos nosso senso comum para peneirar o que ouvimos, e ainda mais o que lemos, e aguardemos a constatação dos fatos antes de ajudarmos a divulgar os relatórios. Homens foram arruinados, o bom nome de uma família destruído, através da imprudência de um boato ocioso.

O exagero na fala, mesmo quando é mais tolo do que de propósito, é um fracasso na Veracidade. Uma pessoa não pode se sentir ‘extremamente arrependido’ por não dar um passeio e ‘extremamente contente’ por receber uma carta, e não dizer nada quando perdemos nosso melhor amigo ou conquistamos uma grande felicidade.

[p 159]

O Hábito de Generalizar.—O hábito de generalizar, de declarar algo sobre toda uma classe de pessoas ou coisas que notamos em apenas um ou dois casos, é algo a ser cuidadosamente protegido por uma pessoa que se sente, como nosso rei Alfred, um revelador da verdade. ‘Todos os copos estão rachados,’ quando um está. ‘Todas as ruas estão fechadas’: talvez duas estejam. ‘Ah, não, não suporto as fotos de Rossetti’: o crítico viu apenas uma. ‘Adoro as músicas de Schumann’: novamente, o crítico ouviu uma. Vamos parar com generalizações desse tipo antes que elas escapem de nossos lábios. Elas não são verdadeiras, porque dão a idéia de um conhecimento ou experiência mais ampla do que a nossa; e, pela indulgência desse tipo de declaração solta, nos incapacitamos do hábito científico da mente—observação precisa e registro exato.

Sobre Criar uma Boa História.—Muitas pessoas são tentadas a criar uma boa história de um incidente insignificante. Se um cão põe o rabo entre as pernas por causa de um apito que o assustou, elas se divertem bastante com a situação para fazer você ‘rir consumidamente.’ Todo o poder ao seu alcance, como diria o irlandês. O humor, o poder de ver e descrever o lado ridículo das coisas, é um presente que, como a misericórdia, abençoa quem dá e quem recebe. Mas é um presente perigoso ao mesmo tempo. É difícil resistir às tentações da Irreverência, Descortesia e até um toque de Malícia, para embelezar uma história; e, se essas armadilhas não forem evitadas, a zombaria incessante, a realização de pequenas piadas, torna-se um cansaço para aqueles que precisam ouvir. A pessoa jocosa precisa de autocontrole ou se torna um tédio; e seus exageros devem ser do tipo em que ninguém deve acreditar, como a perna de [p 160] ouro da senhorita Kilmansegg, ou sua Veracidade está em jogo e ele arrisca a Verdade em troca de ganhar risadas.

O Reino da FicçãoVerdade Essencial e Acidental.—O que diremos sobre fábula, poesia, romance, todo o reino da ficção? Existem dois tipos de Verdade. O que podemos chamar de Verdade acidental; isto é, que tal e tal coisa aconteceu em um certo lugar, em uma certa hora em um determinado dia; e esse é o tipo de Verdade que temos que observar em nossa conversa geral. A outra, a Verdade da Arte, é o que podemos chamar de Verdade essencial; que, por exemplo, dado tal e qual personagem, ele deve ter pensado e agido de tal e tal maneira, com tais e tais conseqüências; que dado, por exemplo, um certo aspecto da natureza, o poeta receberá dele tais e tais idéias; ou, em um terceiro exemplo, que certas coisas sobre a vida comum, como um cachorro com um osso, por exemplo, se apresentarão ao pensador como fábulas, ilustrando alguns dos acontecimentos da vida. Esse tipo de ficção é de enorme valor para nós, seja na poesia ou no romance; nos ensina costumes e maneiras; o que fazer em determinadas circunstâncias; ou o que acontecerá se nos comportarmos de uma certa maneira. Mostra como, o que parece uma pequena falha venial, é frequentemente seguido por terríveis consequências, e nossos olhos são abertos para ver que não é pequena ou venial, mas é uma profunda falta de caráter; algum egoísmo, superficialidade ou engano sobre o qual um homem ou mulher naufraga. Não podemos aprender essas coisas, exceto através do que é chamado de ficção, ou da experiência amarga da vida, das penas pelas quais os escritores de ficção fazem o possível para nos poupar.

O Valor da Ficção depende do Valor do Escritor.—Mas você verá imediatamente que o valor da [p 161] ficção como uma professora de moral depende da sabedoria, discernimento e bondade do escritor; que uma mente superficial dará ensinamentos falsos e superficiais; e, portanto, que apenas a melhor ficção deve ser lida, porque em nenhuma outra devemos encontrar esse tipo de verdade essencial.

A Ficção afeta nosso Entusiasmo.—Não apenas os costumes e nossa moral são ensinados, mas nossos entusiasmos, mesmo nossa religião, são estimulados pela ficção, seja em prosa ou verso. O próprio Nosso Senhor deu alguns de seus ensinamentos mais profundos nas fabulosas histórias conhecidas por parábolas; e, quando pessoas severamente literais (que não percebem que, como dissemos, a Verdade é de dois tipos, a meramente acidental e a essencial, a que passa e a que fica para a eternidade, a Verdade para hoje e a Verdade para todos os tempos) mostram desdém nos registros da Bíblia nos dizendo que o Jardim do Éden, a Serpente e a Maçã, o Dilúvio e muito mais, são meras fábulas ou alegorias, não ficamos surpreendidos.

Verdade Essencial.—O que importa para nós nas histórias da Bíblia é a Verdade essencial. Todas as pessoas piedosas sabem que os muros de Jericó caem diante de sua fé e da trombeta de suas orações. Eles sabem que mares de dificuldade, que ameaçam esmagá-los, dividem-se para deixá-los seguir em frente. Eles ouvem a voz do Senhor no frio da tarde, falando a corações calmos e obedientes; e eles sabem pela experiência de suas próprias vidas que, por meio de cânticos e histórias, salmos e profecias, a Bíblia revela os caminhos de Deus para o homem, e tudo o que há no coração do homem. Essas são as coisas que importam; portanto, estão prontos para esperar o veredicto dos críticos sobre se uma determinada [p 162] narrativa registra fatos que ocorreram em um determinado ano; se esse livro foi escrito por um homem ou por dois. Tudo isso é profundamente interessante, mas nada tem a ver com a Verdade essencial e permanente, a revelação das desconhecidas coisas sobre Deus e sobre o homem que carimba os vários livros da Bíblia com o selo divino.

[p 163]

CAPÍTULO XVI

ALGUMAS CAUSAS DA MENTIRA

Mentiras Maliciosas.—Falta de escrúpulo, julgamento precipitado, exagero, zombaria, são, por assim dizer, os pequenos escaramuçadores que assaltam as defesas da fortaleza da Verdade como o acaso oferece; mas também há sapadores e mineiros que cavam sob suas fundações, e estes pedem nossa atenção mais séria. Existem, como vimos, Malícia e Inveja, que levam a Calúnia; e, dentre todas as mentiras, nenhuma é mais odiosa do que aquelas que são ditas para rebaixar alguém na estima de seus amigos. A lei intervém para salvar nossa reputação de danos, assim como para nos salvar de danos corporais, mas muitas palavras prejudiciais podem ser ditas de leve sem medo da lei contra a difamação.

Mentiras Covardes.—A Covardia, mais uma vez, contribui para a Falsidade. Fizemos ou dissemos algo de que nos envergonhamos, e nosso primeiro impulso é negar. Não deixamos cair o fósforo que causou o incêndio, nem nos esquecemos de escrever a carta que a educação exigia, ou dizer a coisa que ofendeu a sra. Foster. A mentira é o refúgio do covarde quando ele é descoberto em uma falha. Mas devemos reunir nossas forças e assumir; nossos amigos nos amarão mais, apesar de nossa culpa, se apenas dissermos que o fizemos; eles gostam de nossa coragem [p 164] e nos honram por lembrar que “todos os mentirosos são abominação ao Senhor.”

“Ouse ser verdadeiro. Nada justifica uma mentira;

Uma falha que precisa dela acaba dobrando de tamanho.”

A Falsidade da Reserva.—Parecido com a mentira da Ocultação, é o hábito da Reserva, que, embora não conte uma mentira, falha em dizer a verdade. ‘Onde você esteve hoje?’ ‘Oh! Fui passear na direção de Milton.’ Na verdade fomos à cidade e compramos chocolate ou fizemos compras, digamos. A conversa franca teria deixado tudo claro, e ser franco sobre nossos pequenos assuntos é da natureza da Verdade e é um dever que devemos às pessoas com quem vivemos. De fato, a maioria das pessoas sabe quando uma mentira está sendo contada ou quando alguma coisa está sendo omitida.

Vangloriando-se de Mentiras.—Pessoas vaidosas contam mentiras vangloriadas; eles acham que seus amigos os valorizarão mais pelo que receberam ou pelas coisas que viram ou fizeram, ou pelas boas pessoas que conhecem. Como toda mentira, isso é tolo e perverso. Se conquistamos, por mentiras arrogantes, a amizade dos tolos e dos vaidosos; aquela própria amizade é um prejuízo para o nosso próprio caráter, e é apenas o vaidoso e tolo que podemos enganar; pessoas boas e sensatas não se deixam enganar, e quanto mais nos gabamos, menos pensam de nós.

Fantasias mentirosas.—Existem pessoas que vivem tão constantemente em castelos Espanhóis de sua própria construção, que elas fantasiam em suas conversas. Elas dirão a você que estiveram aqui e ali, conversaram com essa e essa grande pessoa, ou talvez tenham sido sequestrados e deixados em uma ilha deserta, ou que não são realmente filhos de seus pais, mas que foram trocados no berçário, os filhos e filhas de um duque ou de um catador de trapos. [p 165] Essa maneira de mentir vem de um hábito mental muito perigoso. Quando as pessoas não conseguem discernir entre fato e fantasia, e misturam as duas na conversa, elas estão gradualmente perdendo o uso de sua Razão e se qualificando para terminar em um hospício. Não podemos nos permitir dizer coisas que a Razão e a Consciência não aprovam.

Mentiras em nome da amizade.—Não é fácil falar a verdade quando isso fará com que um amigo tenha problemas. ‘Você deixou o portão aberto?’ ‘Não.’ ‘Tom deixou?’ Você sabe que Tom deixou, e que é culpa dele que as ovelhas tenham comido os cravos. O que você deve dizer? Nenhum garoto decente deve assumir a culpa de outro, mas também não deve mentir para proteger seu amigo às suas próprias custas. Mas se você disser ‘Tom é meu amigo, não posso dizer o que ele faz ou não,’ provavelmente nenhuma pergunta mais será feita. Mais uma advertência: ‘Tudo é justo no amor e na guerra’ é dito para cobrir muitas mentiras. As pessoas pensam que precisam falar a verdade por seu próprio lado, mas uma mentira é boa o suficiente para seus oponentes. Eles esquecem que a mentira é uma espada de dois gumes, ferindo aqueles que falam mais do que aqueles que ouvem, e que ninguém pode ter ‘a flor branca de uma vida sem culpa’ se não é conhecido por seus amigos e inimigos como alguém cuja palavra é para ser confiada.

Magna est Veritas (Grande e a Verdade).—Tomemos coragem: a Verdade, a serva da Justiça, é uma presença bonita em todas as Almas Humanas e, com ela, seu grupo de assistentes, Veracidade, Simplicidade, cujo trabalho é garantir que cada palavra falada signifique exatamente o que parece significar, e nada mais e nada menos: Sinceridade, que assegura que a palavra da boca coincide exatamente [p 166] com o pensamento do coração, que dizemos exatamente o que pensamos: Fidelidade, que nos torna fiéis a todas as promessas a qualquer custo—exceto sempre as promessas que nunca deveriam ter sido feitas; a única coisa honrosa que podemos fazer é quebrar uma promessa que é errada em si mesma. É verdade que os Demônios dessas qualidades também existem—a Duplicidade, com sugestões e insinuações e significados duplos; Engano, tentando fazer tropeçar a Sinceridade em derramar palavras de felicitações, simpatia, bondade, da boca para fora; Perfídia, que rompe a fé e faz promessas sem efeito. Mas, novamente, vamos ter coragem; estes são os inimigos a serem encarados por toda Alma Humana valente:

Magna est Veritas et Prævalebit.

[p 167]

CAPÍTULO XVII

INTEGRIDADE: A AÇÃO JUSTA

Integridade no Trabalho—‘Ca’ Canny.’—Há algum tempo, os jornais fizeram uma acusação séria contra o ‘trabalhador britânico.’ Dizia-se que ele aceitou o ‘Ca’ canny’ como lema. Ou seja, o homem pago por hora estava comprometido a fazer, decentemente, porém o mínimo de trabalho possível durante aquele período. Se ele era um pedreiro, por exemplo, estava limitado à colocação de um certo número de tijolos, talvez metade do que poderia ser colocado naquele tempo; e assim por diante com outros empregos. Esta ação deveria promover os interesses dos homens desempregados, porque assim haveria mais trabalho a ser distribuído.

As pessoas sensatas percebem que isso é uma falácia. O homem que faz um trabalho bom e honesto, produzindo o máximo que pode em um determinado tempo, é quem promove os interesses de sua classe; porque ele induz as pessoas com dinheiro a gastá-lo na realização de um trabalho bom e feito honestamente, seja na construção de casas ou na confecção de sapatos. O operário ‘ca’ canny’ é um obstáculo e causa prejuízo para seu empregador, afasta outros empregadores de interessarem-se por seus serviços e constrói uma má reputação à classe e ao país; e de todas as queixas de que homens e nações sofrem, [p 168] não há nenhuma que demore tanto para superar como a de uma má reputação. O homem que faz menos trabalho do que ele pode, ou um trabalho pior do que é capaz de fazer em um determinado tempo, pode convencer a si mesmo de que está beneficiando seus companheiros, mas ele nunca enganará ninguém.

Um Padrão.—Você provavelmente notou a medida métrica padrão cortada no granito em uma esquina da Trafalgar Square. Se houver uma disputa quanto ao comprimento correto de um metro, ela poderia ser resolvida por comparação com esta medida padrão. Bem, todo mundo carrega uma medida padrão semelhante em seu próprio peito—uma regra pela qual julgamos a integridade de um trabalhador. Sabemos se o trabalho realizado por tal e tal homem foi inteiramente bem feito e é o que chamamos de trabalho honesto. É por essa lei da integridade, baseada em costumes, que todo homem íntegro, que não é preguiçoso nem negligente, deve conduzir o trabalho que lhe traz o sustento. Embora nossa opinião não seja pronunciada publicamente, classificamos o trabalho como honesto ou desonesto. Por honesto consideramos aquele trabalhador que é uma pessoa íntegra, isto é, um homem completo.

Somos todos Trabalhadores Remunerados.—Podemos não ser todos pedreiros ou carpinteiros, mas, em certo sentido, somos todos trabalhadores remunerados e não podemos escapar da obrigação vinculada à integridade.

O estudante, o jovem da faculdade, recebe pagamento de dois tipos—o custo de sua educação e a confiança depositada nele por seus pais e professores. Ele também tem outro empregador, que pode ser negligente durante o trabalho, mas visitará o trabalhador com pesadas multas a longo prazo. Toda pessoa deve integridade a si mesma e aos outros; e é ele próprio quem mais sofrerá no final de cada falha em produzir um trabalho honesto em um tempo determinado.

[p 169]

Após o período do que chamamos de educação, seja a moça que trabalha em casa, seja o garoto ou a garota que saem a procura de trabalho mundo afora, ainda há empregadores com quem contar e salários que devem ser contabilizados, mesmo sendo eles os salários irrestritos e irrelevantes dados na liberdade da vida no lar. Não podemos escapar do dever de integridade, por mais fáceis que sejam as coisas para nós. Certas obrigações nos são devidas em troca do que recebemos; devido por nós a nossos pais e familiares, ou a nosso empregador ou chefe; e ainda mais, devido a nós mesmos e ao nosso próprio futuro—ao caráter que estamos continuamente construindo ou destruindo. De fato, é mais fácil fazer o trabalho definido da escola ou profissão do que o trabalho indefinido e facilmente evitável que pertence à dona de casa.

A Integridade cresce.—Sabemos que um número inteiro é um número inteiro; e um homem íntegro é um homem inteiro, completo e sólido. Como a própria Roma, esse homem não é construído em um dia. Desde a juventude, ele ficou ciente das tentações de fugir, atrasar, adiar o seu trabalho—ora, até mesmo plagiar, ou seja, fazê-lo por outra mão e distribuí-lo como seu.

Ele ficou tentado a dizer para si mesmo: ‘Não importa,’ ‘Oh, isso serve,’ ‘É tão bom quanto o de Jones, de qualquer maneira,’ ‘Ele nunca saberá a diferença,’ ‘Ele não vai notar,’ ‘Não vejo a importância em tanto esforço,’ ‘Isso não vai cair na prova.’ (e páginas de textos cheios de ideias são deixadas sem ler). Destas, e centenas de outras tentações de brincar com seu trabalho, o homem íntegro mantém distância. Ele diz a si mesmo: ‘Devo isso a meus pais’—ou a meus professores ou a meus empregadores—‘de fazer isso o mais rápido [p 170] e da melhor maneira possível; além do mais, devo isso a mim mesmo.’ Ele se empenha e não deve ser enganado por um camarada preguiçoso ou por um hobby convidativo até que a tarefa em particular seja concluída.

Tudo o que ele empreendeu ajudou a torná-lo um homem íntegro; todo trabalho, hexâmetros latinos, quadráticos, todos os livros que leu, tudo o que ele tentou, foi um trabalho honesto. Eu não digo que ele nunca se esquivou de um trabalho que surgisse em prol de um hobby envolvente, mas ele nunca se fez de ‘ca’ canny’ com seu trabalho. Se ele se esquivou de vez em quando, ele fez isso completamente, e teve que assumir; mas as coisas que ele fez foram feitas honestamente. Essa é a história do homem íntegro—que não foi criado em um dia. ‘Oh, eu não consigo me esforçar tanto assim, farei somente o que consigo aguentar!’ Agora, isso é um erro. O trabalhador íntegro trabalha com vontade, faz o trabalho completo e com prazer, e tem mais tempo para suas próprias diversões do que a pobre criatura ‘ca’-canny’ cujos trabalhos nunca são realizados.

É bom recordar até mesmo aquele único ano em que as tarefas que vieram à mão foram realizadas, totalmente realizadas, nas quais mantivemos nossa integridade—como filho, em assuntos tão pequenos quanto a exatidão nas palavras; como aluno ou aluna, colocando toda a nossa mente em nosso trabalho. Até os jogos querem todo o jogador, eles querem Integridade.

‘Faça você a Próxima Coisa.’—Todos estamos convencidos de que a Integridade é uma coisa boa. Nossos corações se erguem dentro de nós em nome dessa graça. Dizemos para nós mesmos: ‘Será meu. Estou determinado a ser um homem íntegro.’ Mas no Reino de Alma Humana, como no resto do mundo, tudo depende de outras coisas, e ninguém pode ter essa excelente qualidade [p 171] sem colocar sua mente, assim como seu coração, no esforço de obtê-la.

Agora, a alma ansiosa, que dá atenção e zelo ao seu trabalho, muitas vezes estraga sua integridade perseguindo muitas coisas quando deveria fazer a próxima coisa em ordem.

Ele tem que escrever uma redação e procura ‘Plassy’ na Enciclopédia; mas ele encontra ‘Platão’ no caminho e parte para um curso de investigação tão interessante que o tempo acaba, e sua redação não é escrita, ou escrita de uma maneira pobre e escassa. É bom nos darmos conta de que sempre há uma próxima coisa a ser feita, seja no trabalho ou no lazer; e que a próxima coisa, por mais insignificante que seja, é a certa; não tanto por si só, talvez, mas porque, cada vez que insistimos em fazer a próxima coisa, ganhamos poder na administração daquela égua indisciplinada, a Inclinação.

Faça a Coisa Principal.—Mas encontrar ‘a próxima coisa’ não é, afinal, tão simples. Geralmente é uma questão de seleção. Há vinte cartas para escrever, uma dúzia de encomendas, uma quantidade de livros que você deseja ler e muitas organizações e arranjos de prateleiras e gavetas nas quais você gostaria de mergulhar de uma só vez.

Já foi dito com humor: “Nunca faça hoje o que você pode adiar até amanhã.” A pessoa dilatória e procrastinadora se alegra com um conselho como esse! Mas não tão rápido, amigo; essa regra fácil da vida significa “colocar as primeiras coisas em primeiro lugar.” Agora, o poder de ordenar, organizar, o trabalho que isso implica, distingue entre uma pessoa inteligente e uma pessoa não inteligente que deixa de fazer o que deve ser feito por se perder em coisas insignificantes. Estes últimos vão responder a vinte cartas, digamos, exatamente quando elas chegam à mão. [p 172] Ele acaba deixando sua correspondência inacabada; e as três ou quatro cartas que era necessário responder são deixadas para outro dia.

O poder de distinguir o que deve ser feito imediatamente, do que pode ser feito, vem praticamente por hábito. A princípio, requer atenção e análise. Mas mente e corpo entram no caminho de fazer a maioria das coisas; e a pessoa, cuja mente tem o hábito de destacar as coisas importantes e executá-las primeiro, economiza muito aborrecimento para si e para os outros e ganha em Integridade.

O Hábito de Terminar.—O que vale a pena começar vale a pena terminar, e o que vale a pena fazer vale a pena fazer bem. Não se deixe começar a fazer uma dúzia de coisas, todas elas ficando inacabadas. Claro que existem cinquenta razões para fazer a coisa nova; mas aqui está outro caso em que devemos conter essa égua, a Inclinação. Vale a pena continuar a fazer o que estamos fazendo até terminarmos. Mesmo assim, existe a tentação de fugir para conseguir algo novo; mas façamos cada trabalho da maneira mais perfeita que sabemos, lembrando que cada coisa que produzimos é um pouco de nós mesmos, e devemos deixá-la inteira e completa; pois isso é Integridade.

Os preguiçosos, os descuidados e os voláteis podem ser suficientemente atraentes como amigos, mas não resultam em trabalho honesto e não estão construindo para si mesmos a integridade de caráter. Isso repousa sobre os fundamentos da diligência, atenção e perseverança. No final, a integridade gera alegria, porque a pessoa que é honesta em relação ao seu trabalho tem tempo para brincar e não fica com a consciência pesada lembrando das coisas mal feitas ou deixadas por fazer.

[p 173]

INTEGRIDADE NO USO DO TEMPO

Vagabundos e Preguiçosos.—É uma coisa ruim pensar que o tempo é nosso e que podemos fazer com ele o que quisermos. Estamos todos empregados; todos temos deveres, e uma certa parte do nosso tempo deve ser dedicada a esses deveres. É surpreendente quanto tempo há em um dia e quantas coisas cabem ali se tivermos força de vontade. Também é surpreendente como um dia, uma semana ou um ano pode escorregar pelos nossos dedos, e nada ter sido feito. Dizemos que não fizemos mal algum, que não pretendemos fazer errado. Simplesmente nos deixamos à deriva. Meninos ou meninas vagam pela vida na escola, homens ou mulheres pela vida no mundo, sem afetar nada, porque não se apegaram. Eles falham nas provas, em suas profissões, no dever de sustentar uma família, no dever de servir sua cidade ou seu país, não porque não tenham cérebro, nem porque sejam cruéis, mas porque não vêem que usar bem o tempo é um dever.

Eles passam o dia trabalhando devagar, esperando que alguém os faça fazer o que deveriam. Agora, isso é uma ilusão. Ninguém pode fazer nenhuma criança pequena fazer as coisas. Se ela é obediente, é porque ela se faz obedecer; se ela é diligente, ela se esforça, e nem todos os cavalos do rei e todos os homens do rei podem tornar a filha pequena diligente; ela própria deve fazer o que deve no momento certo. Esse poder de exercer sua função é uma coisa boa. Todo esforço torna o próximo esforço mais fácil e, uma vez que dominamos o problema, por hábito, é uma satisfação real fazer o trabalho do dia e depois estar livre para desfrutar do lazer.

[p 174]

A Posse do Tempo.—Algumas pessoas gostam muito de fazer um pequeno trabalho pessoal no tempo que deveriam estar dedicando a outro trabalho. A garota que está costurando tem um livro de histórias em mãos. O jovem faz experimentos químicos quando deveria estar ‘lendo.’ O tempo pode ser usado para um fim bastante bom, mas é ‘roubado’ da ocupação a que pertence.

Como você vê, não podemos nos dar ao luxo de ter desvios em nosso caráter. A integridade proíbe esse tipo de maldade. Todo trabalho tem seu tempo devido. O tempo que é devido a uma ocupação pertence a isso e não deve ser usado para nenhum outro propósito. Dick Swiveller é um sujeito um tanto divertido, pois faz graça equilibrando a régua no queixo, atirando canetas em um alvo, e fazendo piadas com a supervisora durante o expediente. Mas foi por isso que Dick se achou onde estava, e realizou tão pouco em sua vida; ele não tinha se dado conta de que trabalho e tempo estão relacionados.

Integridade no Material: Honestidade—“O meu dever para com o meu próximo é—impedir que minhas mãos mexam e roubem”; assim diz o Catecismo da Igreja, e esta é a aceitação comum da palavra honestidade. Devemos, é claro, desprezar o roubo do que pertence a outra pessoa e nos sentir seguros sobre essa acusação pelo menos.

Coisas estranhas vêm à luz de tempos em tempos: ouvimos falar de um homem que vive há sessenta anos; um cidadão respeitado e próspero, um cavalheiro, não apenas em posição, mas no sentido de ser um homem honrado; e quando esse homem tem sessenta anos, desvia grandes somas de dinheiro, aparentemente pela primeira vez. Agora, as pessoas não caem dessa maneira de repente. [p 175] É o barco com um vazamento que afunda; e esse vazamento, a brecha na integridade de um homem, pode ter existido desde sua infância sem afundá-lo até que ele estivesse no mar agitado de uma grande tentação.

Devemos ter cuidado em nossas transações financeiras, ainda mais quando outros confiam em nós. Pessoas honestas são escrupulosas em dar um troco correto, por exemplo.

Uma cautela que devemos ter em mente: não podemos gastar o que não temos. Nosso salário pode chegar no final do mês, mas precisamos esperar para estendê-lo até que ele esteja realmente disponível. O senhor Micawber estava certo na teoria, se não na prática, e quem deveria saber se não ele? “Renda anual de vinte libras, despesa anual de dezenove libras e meio xelim, resulta em felicidade. Renda anual de vinte libras, despesa anual de vinte libras e meio xelim, resultado de miséria.”

O estudante que contrai dívidas ou pede dinheiro emprestado de seus colegas de escola se mostra um homem que gasta mais do que ganha, e isso significa, não apenas um prejuízo para as pessoas que lhe forneceram seus bens, mas um grave prejuízo para si mesmo. Ele fica tão assediado e preocupado com a pressão das dívidas aqui e ali, que não tem espaço em sua mente para pensamentos que valem a pena. Sua perda de integridade é um vazamento que afunda todo o seu caráter.

Dívidas Pequenas.—Nesse sentido, devemos ter em mente o dever de prontidão no pagamento de pequenas dívidas. Geralmente, temos o dinheiro para elas, mas não nos damos ao trabalho de pagar. Um comerciante, por exemplo, enviou uma fatura de dezoito centavos meia dúzia de vezes, pagando a postagem. O devedor não faz o possível para quitar a pequena quantia. Novamente, [p 176] uma menina será cobrada sete vezes por uma soma de três centavos. Nenhuma pessoa íntegra se permite nesse tipo de negligência. O fato de ser problemático e irritante para outras pessoas não é o pior dos problemas. Essa virtude que chamamos de integridade é arruinada por pecados de negligência.

Pechinchas.—Há outra falha na integridade que as pessoas não percebem ser tão degradante quanto a dívida, embora provavelmente seus efeitos sejam tão ruins como; e essa é a caça às pechinchas, na qual até as pessoas de mente correta se permitem.

Surge de um erro de pensamento. As pessoas partem da idéia de que precisam obter o melhor que pode ser adquirido pelo menor preço possível; e, a partir dessa idéia, surge a desesperada necessidade de fazer cotação de preço; a perda de tempo, temperamento e saúde em ir de loja em loja em busca do artigo ‘mais barato e melhor’; o desperdício desonesto do tempo dos assistentes em todas essas lojas—um desperdício pelo qual, é claro, os clientes pagam no final: e a isso se acrescenta muitas vezes a frustração de ter sofrido prejuízo comprando uma ‘Purple Jar’; ou seja, ao examinar atentamente e com calma ao chegar em casa, perceber que o produto não era bem o que se esperava ser. A coisa toda pode ser consertada, e as formas de comércio ajustadas, pelo exercício de um julgamento claro, guiado pela integridade do propósito.

O que queremos é—não a melhor coisa que pode ser obtida pelo menor preço possível—mas algo adequado ao nosso propósito, a um preço que podemos pagar e que sabemos ser justo.

Visto deste ponto de vista, toda a questão é simplificada; não estamos mais perpetuamente dando voltas, nos atormentando e desgastando outras pessoas na busca de pechinchas. Toda [p 177] compra se torna um dever simples e direto. Tomamos como uma questão de integridade lidar com os comerciantes de nossa própria vizinhança, na medida em que eles possam nos suprir. Se eles não o fizerem, temos a liberdade de ir mais longe; mas, nesse caso, logo nos concentramos no comerciante distante que pode suprir nossas necessidades e escapamos da armadilha da caça à pechincha.

Existe um risco adicional na caça às pechinchas, do qual devemos estar cientes. Nada é barato quando não o precisamos; e a tentação de comprar algo para o qual ainda não houve necessidade, porque é uma pechincha, leva a um desperdício de dinheiro desejado para outros usos e ao acúmulo de objetos sem sentido em nossos aposentos. Vale a pena lembrar que o espaço é a coisa mais preciosa e também a mais agradável em uma casa ou quarto; e que mesmo uma pequena sala se torna espaçosa se não estiver cheia de objetos inúteis.

 A Propriedade do Vizinho.—Outro ponto de integridade é o cuidado com a propriedade do vizinho. Amar o próximo como a nós mesmos significa que devemos ser pelo menos tão cuidadosos no uso de sua propriedade quanto no uso da nossa. Todos nós tomamos emprestados livros, seja de bibliotecas públicas ou de nossos amigos, e cabe a nós tomar tanto cuidado com os livros que tomamos emprestados quanto com nossos próprios bens preciosos. Não os guardamos cobertos ou colocando-os em locais úmidos, nem deixamos-os perto do fogo, nem forçamos a encadernação do livro marcando a página que estamos lendo com algum objeto grande.

Se estivermos caminhando em jardins públicos, lembramos que não é fácil manter a grama bonita em tais locais e tomamos cuidado para não andar sobre ela. Temos cuidado com a propriedade da escola, se estamos na escola, com a propriedade da faculdade, se estamos na faculdade; pois esses assuntos pertencem à Integridade. O cuidado em pequenos assuntos [p 178] nos torna mais confiáveis em grandes assuntos. Quando nos somos confiados com a propriedade de terceiros, seja em dinheiro ou material, estamos atentos a desperdícios, descuidos e extravagâncias, porque a integridade exige que devemos cuidar e tirar o máximo proveito de qualquer propriedade que seja colocada em nossas mãos. Não podemos nos permitir desperdiçar nem um pedaço de lacre de cera por diversão.

A Propriedade Emprestada.—A questão do empréstimo está sob o mesmo assunto dos cuidados que devemos à propriedade de outras pessoas. De um lápis preto a um guarda-chuva, os jovens tomam empréstimos sem restrição; e há tanta comunidade de propriedades e boa comunhão entre eles que talvez o uso livre dos pertences um do outro seja quase impossível de objetar. Uma palavra, porém, em nome da honestidade! O que tomamos emprestado, devemos retornar imediatamente, não retornando em pior estado depois de nosso uso. Nenhum grau de comunidade da vida nos dispensa deste dever. O amigo do qual emprestamos pode não prestar atenção ao fato de que não devolvemos o objeto; mas sofremos em nossa totalidade, nossa integridade, de todos esses lapsos.

Como vimos, nosso trabalho, nosso tempo, o material ou a propriedade de que lidamos, são todos assuntos pelo uso justo e honesto dos quais somos responsáveis. Podemos ser culpados de muitos lapsos que ninguém nota, mas cada lapso cria uma imperfeição em nosso próprio caráter. Temos menos integridade após um lapso do que antes; e o hábito de nos permitirmos em pequenas desonestidades, seja em termos de perda de tempo, trabalho desleixado ou propriedade ferida, prepara o caminho para uma queda arruinada na vida após a morte. Mas não precisamos ter medo de cair, pois Integridade está conosco, é uma parte de ‘nós mesmos,’ e apenas nos pede uma atenção.

[p 179]

CAPÍTULO XVIII

OPINIÕES: O PENSAMENTO JUSTO

Três ‘Opiniões.’—Quando dizemos: ‘Eu acho que tudo ficará bem amanhã,’ expressamos uma opinião. Quando dizemos: ‘Jones é excelente; você deveria ouvir as palestras dele sobre o Anabasis’, novamente expressamos uma opinião, embora o ‘eu acho’ seja deixado de fora. Mesmo se dissermos: ‘Vamos caminhar até Purley Woods,’ o que realmente queremos dizer é: ‘Acho que seria agradável caminhar até Purley Woods.’ Não podemos escapar do pensamento, por mais que tentemos; e o pensamento que temos sobre uma pessoa ou coisa é a nossa opinião. As pessoas costumam dizer ‘eu penso’ quando querem dizer ‘eu desejo’; porque realmente para se ter uma opinião sobre um assunto como o clima, por exemplo, depende da pessoa ter notado sinais no tempo e ser capaz de julgar. Portanto, quando queremos ter uma opinião que vale a pena se ter sobre o tempo, consultamos o jardineiro, um fazendeiro ou um marinheiro, pois as profissões desses homens os fazem observar os sinais do tempo.

Quando dizemos: ‘Jones é excelente,’ pode significar que desfrutamos das palestras desse mestre e gostamos dele pessoalmente; se assim for, vale a pena ter nossa opinião; ou pode significar apenas que seguimos a opinião comum dos demais. Todo mundo fala bem do [p 180] Sr. Jones, e nós apenas repetimos isso. Esse tipo de opinião é inútil e mudaria como um galo do tempo se um garoto mal-intencionado apresentasse uma opinião contrária sobre Jones, como: ‘Que gravatas esquisitas ele usa!’ O garoto que vive de opiniões aleatórias não olha para a importância relativa daquelas de que se apossa. As gravatas de Jones e as palestras de Jones são todos a mesma coisa para ele, e o pobre Sr. Jones sobe ou afunda em sua balança a cada observação casual que ouve sobre ele.

Se Mary diz: ‘Vamos a Purley Woods,’ sua opinião é sincera. Ela se lembra das flores dos anos anteriores, e a tendência é isso influenciar seus pensamentos. Obtemos uma opinião real, dela própria, da pessoa que quer alguma coisa; mas não é uma opinião segura, porque nossos desejos afogam nosso julgamento, e nos apressamos em perseguir o que queremos. Esta é a história do jovem que cai em maus caminhos. Suas opiniões são subservientes aos seus desejos, e ele pensa apenas naquilo que lhe agrada acreditar.

Uma Opinião que vale a pena ter.—Podemos reunir três regras, então, quanto a uma opinião que vale a pena ter. Devemos ter pensado sobre o assunto e saber algo sobre ele, como um jardineiro sabe sobre o clima; deve ser nossa própria opinião, e não repetida como um papagaio repete suas frases; e, por fim, deve ser desinteressada, isto é, não deve ser influenciado por nossa inclinação.

Mas ‘por que precisamos ter opiniões,’ você se inclina a perguntar, ‘se elas significam tantos problemas?’ Simplesmente porque somos pessoas. Toda pessoa tem muitas opiniões, seja a sua própria, honestamente pensada ou obtida em seu jornal de estimação ou de seu melhor amigo. A pessoa que pensa modestamente e cuidadosamente suas [p 181] opiniões está cumprindo seu dever com a mesma sinceridade que ajudou a salvar uma vida. Não há mais ou menos sobre dever; e é uma grande parte do nosso trabalho na vida cumprir nosso dever em nossos pensamentos e formar opiniões justas.

Opiniões sujeitas a Julgamento.—Como você sabe, temos um mentor dentro de nós, sobre o qual terei que falar mais profundamente mais tarde; mas, uma vez adquirido o hábito de levar nossos pensamentos à Consciência, logo somos capazes de distinguir o que é certo ou errado em uma opinião antes de expressá-la.

‘Modismos.’—‘Mas muito alarido sobre o que uma pessoa acha acaba virando um modismo, e pessoas que seguem um modismo são um incômodo’; você diz, acrescentando: ‘Eu odeio pessoas cheias de opiniões; eles nunca deixam você em paz.’ É bem verdade que os modismos são cansativos; e por uma de duas razões—ou a pessoa modista pensa demais sobre aquilo e não se preocupa em formar opiniões sobre uma centena de outras questões de igual importância; ou, ele assumiu sua opinião sem o conhecimento completo e abrangente do assunto. Os ‘modismos’ são cansativos, mas alguns homens parecem ser chamados a serem modistas, pelo fato de serem pessoas governadas por uma idéia, porque são responsáveis pela realização de uma reforma.

Assim, Wilberforce e Clarkson estavam ocupados com a questão do tráfico de escravos; Plimsoll, com o de embarcações não navegáveis; Howard, com a questão da disciplina na prisão. Todo grande missionário, todo grande reformador, tem sua mente tão amplamente ocupada com um assunto que há pouco espaço para outros. Homens como esses não são modistas: eles não têm opiniões extremas ou unilaterais, embora um assunto os ocupe com a exclusão de outros.

Mas apenas alguns de nós são chamados a nos dar inteiramente [p 182] a alguma obra de reforma; e, portanto, o resto de nós não deve se deixar ocupar demais com um só grupo de idéias. O modista é a pessoa que fala e pensa somente sobre um assunto; mas se, em vez de apenas falar e pensar, ele dedica sua vida a um bom fim, ele se torna um dos trabalhadores do mundo, um reformador.

Assuntos sobre os quais devemos formar Opiniões.—Todos devemos ter opiniões sobre nosso próprio país, sobre outros países, sobre ocupações, divertimentos, sobre os livros que lemos, as pessoas sobre quem ouvimos falar, as pessoas que encontramos, as imagens que vemos, os personagens que lemos, seja na ficção ou na história; de fato, não há nada que passe pela nossa mente sobre o qual não seja da nossa conta formar opiniões justas e razoáveis. Para que possamos fazer isso, passamos muitos anos, enquanto jovens, na obtenção do conhecimento que deve nos permitir pensar. Quando adulto, também é necessário dedicar tempo à obtenção de conhecimento, mas poucos podem dedicar a maior parte do dia a esse trabalho, como tínhamos a chance de fazê-lo quando jovens. Essa chance, no entanto, é desperdiçada nos jovens que lêem para descobrir fatos que vão cair em uma prova. As palestras que ouvimos, os livros que lemos, não têm utilidade para nós, exceto quando nos fazem pensar.

Quando Numa foi oferecido o trono em Roma, ele havia pensado sobre o assunto. Ele disse que não tinha dons especiais de educação ou berço que o qualificassem para governar. Mas os romanos também pensaram e expressaram sua opinião. Ele não aceitaria a coroa, perguntaram eles, para salvar seu país da ruína? Aquela pergunta continha uma opinião que Numa não havia [p 183] considerado. Sem dúvida, havia quem quisesse governar Roma com fins egoístas; a opinião dos romanos era justa, ele foi guiado por ela e se tornou rei. Aqui temos um exemplo muito bom de como a opinião deve nos governar na vida. Devemos pensar nas coisas, em tudo, por nós mesmos; pensemos na responsabilidade do juiz e do general, rei e ministro, de modo que, se subitamente nos pedirem para tomar qualquer uma dessas posições, saberemos como responder.

Certamente, devemos dizer, como Numa em primeiro lugar, que não tivemos a experiência ou a educação necessária para nos capacitar para um cargo tão alto; e, é claro, não seremos perguntados novamente! Mas é bom saber sobre o que as outras pessoas pensam e fazem; ter ido com o coronel Younghusband para o Tibete, ter defendido Port Arthur com o general Stoessel. Assim, obtemos opiniões que valem a pena ser mantidas sobre guerra, patriotismo, deveres de servidores públicos e muitos outros assuntos. Além disso, esforcemo-nos por descobrir por nós mesmos as responsabilidades e os propósitos dos pais, mestres ou qualquer chefe que seja colocado acima de nós; e, quando damos uma opinião sobre suas ações, é provável que vai ser justa.

Quanto ao clérigo e seus ensinamentos, é, como em outros casos, apenas quando nos preocupamos com as coisas da religião e pensamos muito sobre elas, que temos o direito de opinar.

Opiniões sobre livros.—Da mesma forma, devemos ser justos no que pensamos sobre livros. Livros inúteis não valem o trabalho de pensar e, portanto, não valem a pena ser lidos; mas um livro que vale a pena ler, seja um romance ou uma [p 184] homilia, contém o melhor pensamento do escritor, e só podemos entender seu significado pensando seriamente sobre ele.

De fato, os livros que nos fazem pensar, os poemas sobre os quais ponderamos, a vida dos homens que consideramos são mais úteis para nós do que volumes de bons conselhos. Lemos o que os meninos chamam de ‘bons livros,’ pensando em como são bons e em como somos bons em lê-los! Mas as vezes acontece, que o escritor colocou o que ele tinha a dizer tão claramente que não precisamos pensar por nós mesmos; e parece ser uma lei nas coisas da vida e da mente que não adquirimos nada para nós mesmos, a menos que trabalhemos por isso. É um caso de entrar por um ouvido e sair pelo outro. É por isso que ouvimos sobre nosso Senhor que “não falava com eles a menos que por parábolas.” Ele contou às pessoas histórias que elas podiam deixar passar de leve pela mente como um interesse do momento, ou no qual elas poderiam pensar, formar opiniões e encontrar nelas um guia para o significado de suas vidas.

Suas opiniões sobre livros e outras coisas provavelmente estarão erradas, e você mesmo as corrigirá aos poucos quando ler mais, pensar mais, saber mais. De fato, nenhuma pessoa sábia, por mais idosa que seja, tem certeza de suas opiniões. Ela as segura firme, mas modestamente; e, se ela é como Numa, convencida de que a opinião dos outros é mais sólida do que a dela, ora, ela não tem vergonha do que chamamos de ‘mudar de idéia.’ “Não somos infalíveis, nem mesmo os mais jovens!” foi dito por um homem sábio e espirituoso, que sabia que os jovens costumam ser convencidos—isto é, assumindo opiniões de segunda mão e cumprindo-as obstinadamente. A palavra opinião significa literalmente ‘um pensamento’; o que [p 185] penso, com modéstia e hesitação, e não o que tenho certeza.

Nosso Dever em relação à Opinião.—Começamos a ver qual é o nosso dever sobre as opiniões. Em primeiro lugar, devemos ter ‘um pensamento’ sobre um imenso número de coisas. Portanto, devemos ler, marcar, aprender e digerir interiormente; devemos ouvir e considerar, tendo a certeza de que um dos propósitos para o qual estamos no mundo é formar opiniões justas sobre todos os assuntos que surgirem em nosso caminho.

Em seguida, devemos evitar o atalho para as opiniões; não devemos buscá-las prontas em qualquer esquina; e depois, precisamos aprender—e isso é realmente difícil, uma coisa que nos leva a vida inteira—a reconhecer uma falácia, ou seja, um argumento que parece sólido, mas que não foi examinado. Por exemplo, ‘Todos nascemos iguais’; assim somos, com igual direito ao ar puro, à beleza da terra e do céu, à proteção das leis de nosso país e muito mais. Mas o sentido em que os homens usam a frase é que todos nascemos com um direito igual à propriedade que existe no mundo. Isso é absurdo, como a própria palavra ‘propriedade’ nos mostra: propriedade significa domínio, é a posse das pessoas que a detêm. Temos até vergonha de um cuco que se apropria do ninho que é de posse de outro pássaro. Mas a questão das falácias é grande e tudo o que precisamos ter em mente agora é que os gritos populares, seja na escola ou no país, muitas vezes se baseiam em falácias ou julgamentos falsos. Portanto, devemos examinar de maneira abrangente as opiniões que adotamos.

Em seguida, antes de formar uma opinião sobre alguém em algum lugar ou no poder, devemos tentar perceber e entender a posição dessa pessoa e tudo o que lhe pertence. [p 186] Mais uma coisa, quando chegamos a uma opinião, devemos lembrar que é apenas ‘um pensamento,’ e devemos mantê-lo com desconfiança; mas, como é o nosso pensamento, nossa propriedade que nos chegou através da ponderação, devemos mantê-la firmemente, a menos que, como Numa, nos convencemos de que outra visão é mais sólida do que a nossa.

Mas, novamente, não podemos ser lentos nesta questão de opinião. É o principal trabalho da Justiça pensar apenas pensamentos sobre os assuntos que nos são apresentados, e os melhores homens, os mais sábios, são aqueles que levaram suas mentes a se ocupar do maior número de assuntos e aprenderam a pensar pensamentos justos a respeito deles todos. É um consolo saber que a Justiça, aquele lorde do coração, está sempre disponível para avaliar as opiniões que nos permitimos ter.

[p 187]

CAPÍTULO XIX

PRINCÍPIOS: MOTIVOS JUSTOS

Princípios, Maus e Bons.—Há uma certa classe de opiniões sobre as quais devemos prestar uma atenção especial. Às vezes nós as tomamos de outros, às vezes nós as temos por nós mesmos; mas, em ambos os casos, se tornam nossas, porque agimos de acordo com elas. Essas opiniões governam nossa conduta e são chamadas de Princípios porque são princeps, as primeiras ou principais em importância sobre todas as nossas opiniões. Falamos sobre um garoto de bons princípios, um homem de princípios, uma jovem de princípios elevados; mas todo mundo tem princípios—ou seja, todo mundo tem algumas opiniões principais e dominantes nas quais toda sua conduta se baseia. O garoto que está atrasado para a chamada, cola sua tradução, foge dos jogos e do trabalho, talvez não saiba, mas está agindo segundo princípios. Seus princípios podem não ter se manifestado em palavras, mas, se nós investigarmos, eles aparecem mais ou menos assim: ‘Qual é a vantagem de fazer mais do que você pode?’ ‘De que adianta apressar um sujeito? Eu não vou me apressar!’ ‘De qualquer maneira, de nada adiantará, nunca precisarei falar latim mesmo.’ Estes e outros, são os princípios nos quais toda a sua conduta está fundamentada. Ele se permitiu basear nos pensamentos dos preguiçosos e [p 188] negligentes até não poder se afastar deles. As pessoas chamam-lhe de menino sem princípios, mas provavelmente não há pessoas sem princípios; ele é um garoto que escolheu, deliberadamente, maus princípios sobre os quais construir toda sua conduta.

Um outro sujeito é pontual, rápido e diligente em seu trabalho; ele dificilmente compreende como, mas reuniu, gradualmente, certos princípios fora dos quais não pode deixar de agir. Ele lembra que deve seu trabalho a seus pais e professores; e que esse trabalho, ele tem responsabilidade e obrigação de realizar; é seu dever. Mais uma vez, ele entende que o conhecimento é prazeroso e que sua ocupação enquanto jovem é adquirir todo conhecimento que ele puder. Ele também percebe, que sua futura carreira depende de seu trabalho atual, e que está construindo na sala de aula o homem que será. Ele pode ter ouvido ideias como estas ditas em casa ou na escola, ou elas podem ter surgido em sua mente, ele não sabe como; mas, de qualquer maneira, ele as tomou por suas principais convicções, ou seja, seus princípios e sempre age de acordo elas. Em ambos os casos, a conduta dos meninos é regida por seus princípios; para explicar a diferença entre os dois, devemos voltar à escolha de princípios, e a escolha destes é uma parte muito importante da vida.

Como Distinguir.—O viajante que chega a uma estação ou porto estrangeiro costuma igualmente se divertir e se irritar com o número de carregadores que clamam por sua bagagem, o número de ônibus de hotéis que tentam se apossar dele. Tão suplicantes e cansativos são os princípios que nos são impostos por quase todos que conhecemos, pelos próprios livros e jornais que lemos, bem como, pelas imagens que olhamos.

Desde o início, podemos notar uma diferença. Bons princípios são oferecidos a nós de uma maneira discreta, [p 189] com pouca força e pouca súplica. Os maus princípios são insistentes e urgentes, abafando a voz da consciência por meio de conversas barulhentas, convidando-nos a seguir o caminho que somos inclinados, e a fazer o que gostamos.

Nossos Princípios ‘Em letras maiúsculas.’—É um fato interessante que, embora os princípios de conduta de uma pessoa, muitas vezes, não sejam expressos em palavras, eles sempre são escritos em caracteres próprios. Todo mundo carrega suas regras de conduta escritas em seu rosto, em letras maiúsculas, de modo que, mesmo aquele que passa correndo seja capaz de ler. É bom lembrar disso, porque, embora gostemos de um garoto que tem preguiça ou auto-indulgência, inveja ou malícia, desonestidade, crueldade ou ganância, escritos sobre seus olhos e boca, gostamos dele, mas com uma reserva. Estamos atentos ao princípio ruim que ele escolhe seguir e, embora possamos desfrutar de sua inteligência ou esperteza, não admitimos ter intimidade, nem permitimos que ele tenha uma voz em nossa própria escolha de princípios de conduta.

‘Mas quais são meus princípios?’ você diz; ‘Tenho certeza de que não sei’; e, de fato, não precisamos nos preocupar muito em descobrir; este é um caso em que os espectadores veem a maior parte do jogo, e algumas das pessoas mais jovens que conhecemos, sabem melhor nossos princípios do que nós mesmos. Nossa parte é simplesmente estar atentos; e nos perguntar, de vez em quando, por que estamos sempre correndo atrás de Jones, por exemplo. É porquê ele nos lisonjeia? Coloca ideias falsas de masculinidade, talvez ideias sujas de prazer, em nossas mentes? Nesse caso, nossos princípios estão em falta. Escolhemos um amigo que inspirará o que é ruim em nós. Nós seguimos Brown porque ‘ele é um sujeito honesto,’ e nos fala diretamente quando acha que estamos sendo tolos ou preguiçosos? Bom para nós, se sim. Nós nos juntamos a outros companheiros para chamar Smith de trapaceiro, um mulherengo ou um desajeitado, quando ele se destacou [p 190] em algum trabalho escolar? Nesse caso, devemos ter cuidado; inveja é talvez o princípio que escolhe que ninguém deve ser melhor que nós.

Reunimos nossos princípios inconscientemente; mas eles são nossos mestres; e nosso objetivo é ocasionalmente pegar um deles, olhá-lo de frente, e nos questionar sobre o comportamento que esse princípio produz.

[p 191]

CAPÍTULO XX

JUSTIÇA A NÓS MESMOS: A AUTO-ORDENAÇÃO

Meu Dever para Comigo Mesmo.—Sabemos que devemos justiça ao próximo, ou seja, àqueles acima de nós e àqueles que estão abaixo de nós e aos que estão em nosso próprio nível; para nossa própria família, nossos servos, as pessoas que empregamos e em cujas lojas somos fregueses; e a todos aqueles que conhecemos como parentes e amigos; a um círculo gradualmente cada vez maior de pessoas que finalmente inclui todo o mundo.

Resta uma pessoa a quem devemos uma dívida de justiça, e muitas vidas são desperdiçadas porque essa pessoa é tratada injustamente. O amigo a quem podemos negligenciar quando estamos fazendo justiça é a nossa própria pessoa. “Meu dever para com meu próximo,” diz o Catecismo, “é manter meu corpo em temperança, sobriedade e castidade,”—e isso, em parte porque, se negligenciarmos essa regra da vida, nos tornamos prejudiciais e ofensivos para com nossos vizinhos e, em parte, porque devemos um primeiro dever ao mais próximo de todos os vizinhos, a nossa própria pessoa.

Algumas pessoas fazem grandes coisas no mundo—salvam vidas, escrevem livros, constroem hospitais; mas a pessoa que ordena seu próprio corpo adequadamente também presta um serviço ao mundo. Em primeiro lugar, um bom homem ou mulher, cujo corpo é mantido sob a regra [p 192] tríplice que citei, adorna o mundo, ajuda a torná-lo bonito, apenas por sua presença; e, em segundo lugar, tanto o mal quanto o bem são contagiosos. Um garoto impuro em uma escola fará com que muitos pensem e falem de assuntos que nunca deveriam permitir que seus pensamentos tocassem; e ao mesmo tempo, um único garoto casto que afasta toda essa conversa dele, não a ouve ou permite, ajuda a tornar a escola toda casta. Poucas coisas são mais tristes do que ver um corpo bonito, feito para saúde, força e felicidade—feito à imagem de Deus—ferido e destruído por maus hábitos.

A Temperança evita todo Excesso.—Das três regras de vida pelas quais nossos corpos devem ser ordenados, talvez a temperança seja menos compreendida pelos jovens. Pensamos na figura imponente de Temperantia, de Burne-Jones, derramando água pura de sua jarra para apagar as chamas, as sociedades de temperança e assim por diante; e assim chegamos a associar temperança com abstinência de bebida. Esse certamente é um tipo de temperança; mas o garoto ganancioso, a garota preguiçosa, também são intemperantes, como você pode perceber observando-os andando pela rua. Eles não têm o passo saltitante, o olhar alerta, que pertence à Temperança.

Pode-se até ser intemperante em matéria de inquietação. Podemos brincar com jogos, estudar para provas, ler romances, jogar cartas, qualquer interesse que nos absorva, em excesso; e todo excesso é intemperança. Isso significa que a pessoa que se entrega excessivamente perdeu o controle sobre si mesma, de modo que há somente uma coisa que ele precisa ter ou precisa fazer, seja qual for a perda para si ou a inconveniência para os outros. Uma vez que estamos cientes desse perigo de intemperança, mesmo em coisas inocentes, ora, vigiamos. Nós [p 193] não nos servimos de um quinto pedaço de torta(!); acordamos cedo; nos preparamos com um banho frio e uma caminhada vigorosa; nos alongamos e praticamos exercícios em nossos quartos. Sentimos vergonha se nos deparamos com a gordura e não com os músculos, e nos motivamos por meio de mais exercícios, menos relaxamento; também tomamos cuidado para não comer duas ou três porções quando gostamos do prato. A propósito, essa é uma boa regra. Se uma porção de carne de menor qualidade é suficiente, há provas positivas de que uma porção de cordeiro assado, digamos, também é suficiente. Devemos tomar cuidado para não ficarmos pesados demais, porque peso demais no corpo significa lentidão de mente, embotamento no pensamento. Todos nós podemos ser temperantes sem nos submeter a qualquer dieta específica (não precisamos viver de maçãs e nozes e coisas do gênero); de fato, talvez a temperança seja melhor demonstrada ao comermos com moderação o que nos é apresentado, por mais agradável que seja.

A Sobriedade não busca Excitação.—Sobriedade parece significar, em primeiro lugar, de acordo com a derivação da palavra, ser removido da embriaguez. Nunca foi tão fácil para os jovens que nunca provaram álcool permanecerem sóbrios do que nos dias de hoje, quando tantas pessoas boas e atenciosas, homens de negócios, pessoas na chamada sociedade, bebem água e não vinho.

Ouvimos falar daquela nação da Grécia antiga, cujo costume dos grandes homens era de dar de beber a seus escravos, a fim de que seus filhos pudessem ver como é absurdo e nojento um homem bêbado; eles faziam isso, a fim de que seus jovens crescessem com nojo a embriaguez como um vício dos escravos. O povo cristão não pode causar [p 194] ofensa aos outros; mas, ora, não nos faltam exemplos. Até as crianças que vivem nas cidades vêem algo do horror da embriaguez, e se perguntam sobre isso. Como pode Jervis, um homem tão bom quando está sóbrio, continuar bebendo até que finalmente cai, um fim horrível, na beira da rua? É uma pergunta que vale a pena fazer, porque toda a história da embriaguez e, de fato, de todo vício que se torna mestre de um homem, depende dessa resposta.

A Auto-indulgência leva ao Vício.—Um homem começa a beber pelo mesmo motivo que leva um garoto à loja de artigos para caça. Ele quer se entregar a algo agradável e acha que não há ‘dano’ em um copo de cerveja ou vinho. Agora, ‘nenhum dano’ é um posto de sinalização perigoso a seguir. Aponta para uma estrada ampla sobre a qual existem muitos viajantes alegres; e a partida é fácil, porque é ladeira abaixo. Este é o caminho da auto-indulgência; e sempre que tivermos de justificar qualquer coisa que fazemos a nós mesmos, dizendo: ‘Não há mal nisso,’ podemos ter certeza de que estamos descendo a ladeira. Nossa única chance, então, é lutar de volta pelo caminho difícil do dever. A pessoa que persiste na ladeira abaixo fácil, divertida com a música e o riso dos camaradas alegres, e optando por seguir o caminho que não lhe causa problemas, chega eventualmente a uma encruzilhada; a encruzilhada de quatro caminhos diferentes onde os companheiros se dividem.

A Separação.—Nesse ponto, eles perdem a alegria e se apressam por uma ou outra encruzilhada com a ânsia de homens envolvidos em uma questão de vida ou morte; assim são, em matéria de morte, mas não de vida.

Eles estão envolvidos no dano gradual, na morte lenta, de seu belo e nobre corpo, [p 195] aquele grande presente de Deus para cada um de nós; o encharcamento e o enfraquecimento do maravilhoso cérebro que usamos quando pensamos e sabemos, quando amamos e oramos. O maior mestre do mundo não consegue produzir nada além de tons rachados e fracos de um instrumento cujas cordas estão desgastadas e quebradas; portanto, por mais brilhante que seja o homem que se deixa abater por uma das quatro encruzilhadas do vício, ele perde toda a promessa e poder de sua genialidade depois de ferir seu cérebro por hábitos viciosos; pois não podemos pensar ou agir sobre nada que valha a pena sem um cérebro sadio.

O Destino dos Bêbados.—A primeira dessas encruzilhadas leva à embriaguez, e o homem escolhe esse caminho quando passa do estágio de auto-indulgência; isto é, quando ele não bebe mais porque lhe agrada, mas bebe porque ele precisa. Essa é a pena terrível que o homem ou a mulher pagam pela auto-indulgência. É criado um hábito de desejo que muito poucos conseguem resistir; a consciência, a ajuda de amigos, até mesmo orações fracas parecem não ter efeito. O pobre coitado bebe porque está infeliz; no momento, a bebida o faz feliz porque o estimula. Isso faz com que uma corrente rápida de sangue flua através de seu cérebro; seus pensamentos são rápidos e a vida é agradável. Mas, infelizmente um momento de depressão segue imediatamente. O homem não consegue pensar e não consegue sentir, sente pena de si mesmo, derrama lágrimas sentimentais, não suporta o fardo da existência e corre novamente para o inimigo. Ele diz a você que precisa beber, que está além da carne e do sangue suportar o desejo enlouquecedor que o consome.

Ele bebe sua saúde e sua riqueza, seus amigos e sua profissão; ele é um desastre no corpo e na mente, e as pessoas se perguntam como ele vive—se é que essa [p 196] maneira de se arrastar por lugares obscuros pode ser chamada de vida.

É isso um retorno justo a Deus pelas maravilhosas investiduras de corpo e mente que este homem recebeu? É justo com sua família e vizinhos se ele se tornar um fardo e uma ofensa? É justo para si mesmo—esse eu maravilhoso e belo, com todos os seus poderes de coração, mente e alma, dos quais é a obrigação de todos nós aproveitar ao máximo?

O que alguém diria de um jovem que recebeu como presente de aniversário um relógio caro, e imediatamente abriu a caixa e despejou ácido sulfúrico no mecanismo? Você provavelmente diria que ele era um tolo ou louco para destruir o que custava muito dinheiro para comprar, muito pensamento e trabalho delicado para construir. O que, então, diríamos de quem destrói esse mecanismo muito mais maravilhoso do cérebro e do corpo, por meio do qual ele pensa, vive e sente?

Você deve achar que seria misericordioso colocar esses criminosos em um hospício com outros lunáticos: mas Deus não nos permite escapar da responsabilidade de escolher entre o certo e o errado, mesmo que sempre escolhamos o errado e ofendamos continuamente a Ele, nós mesmos e nosso vizinho.

‘En parole.’—Esse pensamento torna muito grande a nossa responsabilidade de ordenar nosso corpo. Simplesmente porque podemos, se quisermos, fazer a coisa errada, temos que ter ainda mais honra para escolher a coisa certa. Os franceses têm uma expressão bonita que usamos no caso de prisioneiros de guerra. É permitido ao prisioneiro muita liberdade en parole, em liberdade condicional, isto é, se ele der sua palavra para não tentar escapar. Tão vinculante é a palavra de um cavalheiro, tanto na França, [p 197] Inglaterra, e em outros lugares, que o prisioneiro de guerra, que pode ser esperto o suficiente para conseguir maneiras de sair da cela mais fortemente protegida, não pode escapar de sua própria palavra. Ele pode andar pelas ruas, ir aqui e ali, fazer o que quiser; mas há um muro invisível, confinando-o ao qual ele não pode ultrapassar, e esse muro não passa de sua palavra—ele está en parole.

É assim que Deus nos trata em matéria da auto-indulgência. O caminho está aberto para nós na Larga Estrada, mas somos impedidos por nossa liberdade condicional. Podemos não ter proferido nossa palavra em voz alta, mas a palavra é apenas um sinal, significa ‘em minha honra’; e todos temos a honra de nos proteger da ruína, por mais fácil e convidativo que seja o caminho para ela.

A dificuldade é que muitos jovens viajam naquela Estrada Larga sem saber que eles estão nela; eles não param para pensar e olhar ao redor. Eles dizem: ‘Não importa’—este pequeno prazer ou outro—e eles perdem a honra antes mesmo que percebam.

Excitação.—Existem outras maneiras de nos intoxicarmos além da bebida forte. O que quer que produza um fluxo não natural de sangue para o cérebro tem algumas das qualidades da intoxicação e certamente será seguido pela depressão quando esse fluxo extra de sangue deixar o cérebro empobrecido. Chamamos esse tipo de intoxicação de excitação, e não é um dano quando é ocasional; mas as pessoas podem querer excitação todos os dias, a cada hora, e podem ficar irritadas e sem graça quando não a têm; eles querem emoção pela mesma razão que o bêbado quer beber e, pela mesma razão, quanto mais eles têm, mais eles querem.

[p 198]

Eles não conseguem desfrutar da companhia de seus amigos sem muita risada e conversas doidas. Eles querem estar sempre com pessoas que ‘as fazem rir,’ por mais que seja ridículo. Eles ficam desconfortáveis ​​se não puderem ir a todas as festas ao seu alcance. Eles não acham jogos suficientemente emocionantes, a menos que sejam jogos de azar; e, no final, o hábito de jogar pode se apossar deles—um hábito tão ruinoso, se não tão nojento, quanto o hábito de beber.

Quem quiser manter seu corpo sobriamente deve evitar todos esses excessos. Eu não digo que ele nunca deve estar excitado, porque o que quer que nos agrade ou incomode muito, nos excita; mas isso é bem diferente de ir atrás da excitação, e ficar desconfortável se algo excitante não está acontecendo o tempo todo.

Os Caminhos do Glutão—Circe.—Os outros caminhos que se ramificam na Estrada Larga levam aos bairros da Gula, Preguiça e Impureza. As pessoas que quebram a liberdade condicional em relação à ordenação de seus corpos encontram seu caminho em um ou outro dos quatro. Algumas pessoas pairam entre as quatro encruzilhadas, ora descendo uma, ora outra e ora outra; mas outros—como o bêbado, o glutão, a preguiçosa e o imundo—escolhem seu caminho e se apegam a ele, deixando-se perder, corpo e alma, em busca de alguma luxúria do corpo.

Você se lembra de como Circe transformou os marinheiros fortes de Ulisses em suínos. Não posso fazer melhor do que citar a história nas palavras de Nathaniel Hawthorne. Lembre-se de que Circe conheceu os marinheiros errantes que haviam sido atraídos para o palácio dela pelo som de um canto agradável. A bela dama da ilha se aproximou, sorrindo e estendendo a mão, e deu as boas vindas ao grupo. “‘Sabe,’ [p 199] ela disse, ‘que eu sei tudo sobre seus problemas; e vocês não podem duvidar de que desejo fazê-los felizes pelo tempo que vocês permanecerem comigo. Para este propósito, meus convidados de honra, ordenei que um banquete fosse preparado. Peixes, aves e carne, assados ​​e em ensopados deliciosos, e temperados, acredito, para todos os seus gostos, estão prontos para serem servidos. Se o seu apetite lhe disser que é hora do jantar, venha comigo para o salão de festas.’ Com este amável convite, os marinheiros famintos ficaram muito felizes; e um deles … garantiu à anfitriã hospitaleira que qualquer hora do dia era hora de jantar para eles. …

“Eles entraram em um salão magnífico. … Cada um dos estrangeiros foi convidado a sentar-se; e lá estavam eles … Sentados em tronos almofadados e com dosséis. … E você deveria ter visto os convidados assentindo, piscando com um olho, e inclinando-se de um trono para outro, para comunicar sua satisfação em sussurros roucos. ‘Nossa boa anfitriã fez reis de todos nós,’ disse um deles. ‘Ah, você sente o cheiro do banquete?’ … ‘Espero,’ disse outro, ‘que sejam bons cortes de carne, lombos, costelas e coxas, sem muitos acompanhamentos. Se eu achasse que a boa dama não se incomodaria, eu pediria até uma fatia gorda de bacon frito para começar.’ Mas a bela mulher bateu palmas, e imediatamente se viram homens entrando em fila, trazendo pratos da comida rica, todos quentes da fogueira da cozinha, e emitindo um vapor que pairava como uma nuvem abaixo a cúpula de cristal do salão. Um número igual de atendentes trouxe grandes garrafas de vinho de vários tipos, alguns dos quais brilhavam quando foram derramados e borbulhavam pela garganta. … Qualquer que seja a pequena falha que poderiam encontrar com [p 200] os pratos, eles se sentaram no jantar por um tempo prodigiosamente longo, e isso realmente teria feito você se envergonhar ao ver como eles bebiam a bebida e devoravam a comida. Eles estavam sentados em tronos de ouro, com certeza, mas se comportavam como porcos em um chiqueiro. … Me causa um rubor no rosto quando considero, em minha opinião, as montanhas de carne e pudim, os galões de vinho, que esses glutões comiam e bebiam. Eles esqueceram tudo sobre suas casas … e tudo o mais, exceto esse banquete no qual eles queriam se banquetear para sempre. Mas finalmente começaram a parar de comer e beber, por mera incapacidade de aguentar mais. …

“Todos pararam de comer e recostaram-se em seus tronos, com um aspecto tão estúpido e impotente que os tornava ridículos de se ver. Quando a anfitriã viu isso, ela riu em voz alta; assim como suas quatro donzelas; e os homens que serviram os pratos e aqueles que serviram o vinho. ‘Desgraçados!’ exclamou ela: ‘vocês abusaram da hospitalidade de uma dama; e neste salão principesco seu comportamento foi como o de um porco-da-índia. Vocês já são porcos em tudo, exceto na forma humana. … aceitem suas formas, glutões e retirem-se para o chiqueiro!’ Proferindo estas últimas palavras, ela acenou com a varinha, batendo o pé imperiosamente; cada um dos convidados ficou horrorizado ao ver, em vez de seus camaradas em forma humana, porcos sentados no mesmo número de tronos de ouro. … Parecia tão intoleravelmente absurdo ver porcos em tronos almofadados, que se apressaram em se pôr de quatro, como outros porcos. Eles tentaram gemer e implorar por misericórdia, mas somente emitiram os mais terríveis grunhidos e gritos que já surgiram de gargantas de porcos. … Credo! Que [p 201] orelhas eles tinham! Que olhinhos vermelhos, meio enterrados em gordura! E que focinhos compridos em vez de narizes gregos!”

Interesses na Vida.—Se desejamos fazer justiça a ‘nós mesmos,’ mantendo nosso corpo em temperança, sobriedade e castidade, devemos começar com nossos pensamentos, lembrando que, nesse assunto, podemos ser heróis, embora ninguém saiba. De cada um de nós é verdade que—

“Uma obrigação eu tenho,

Um Deus para glorificar.”

E que razão esplêndida temos para cuidar de nossos pensamentos! As pessoas dizem: ‘Cuide dos centavos, e as libras cuidarão de si mesmas’; mas muito mais verdadeiro é: ‘Cuide dos pensamentos, e os atos cuidarão de si mesmos.’

Se quisermos manter a sobriedade, devemos trabalhar, ler e pensar; e mais—devemos agradecer. Não há vida de pessoa que não seria extremamente interessante se a vivesse plenamente; e aquele cuja vida é cheia de interesses não busca excitação, de bebida ou de outras fontes.

A pessoa que tem interesses os oferece a todos a volta dela. O garoto que cria um álbum de cartões postais define uma moda que sua escola segue; e assim com todo interesse na vida—poesia, história ou qualquer classe de objetos naturais.

Tenha interesses e dê-os a outros, e você estará bastante protegido do desejo de excitação que leva à embriaguez. Os interesses também protegerão todos nós da degradação da gula. A criança que olha o prato de seu irmão e anseia pelo que ela acha que é uma comida melhor que a dela, é uma criança que não tem nada melhor em que pensar.

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Preguiça.—O menino ou menina que tem interesses não é um preguiçoso. Hóquei, tênis, críquete, longas caminhadas, futebol, remo, patinação—tudo isso ajuda a dar-lhe o corpo vigoroso com o qual seria tedioso ficar deitado ou sentado. A propósito, não se deve deixar se tornar o ‘garoto gordo’ em Pickwick, ou em qualquer outro lugar! Quando as pessoas engordam, nem sempre elas comem demais, embora a gula possa ter algo a ver com isso; mas é certamente porque eles não fazem exercícios suficientes e, portanto, criam gordura e não músculos. Rapazes na faculdade, meninos em escolas públicas, não se deixem engordar; fazer isso seria ‘má forma.’ Portanto, se descobrimos esse sintoma desagradável em nós mesmos, é melhor considerarmos se a preguiça não é a causa—um vício horrível pelo qual ninguém se contentaria em arruinar sua vida.

Imundícia.—Um Caminho para a Ruína ainda precisa ser considerado, a última e a pior das quatro encruzilhadas, a que leva ao pecado mortal da imundícia. Aqui também está um pecado cometido no pensamento: nós cometemos o crime quando o pensamos. Sabemos o perigo de nos deixarmos conversar com pessoas de mente impura, e o terrível perigo de imaginar coisas que podemos ler. Não podemos evitar encontrar o que pode levar a más imaginações; talvez, se pudéssemos, não houvesse batalha para lutar, e então não pudéssemos obedecer à ordem: “Glorifique a Deus com seus corpos.” Cada um de nós deve ter o poder de fechar as cortinas, por assim dizer, para não deixar que a imaginação imagine a coisa imunda. Porque já na primeira vez que a imaginação se comporta como Peeping Tom, torna-se uma luta impedir pensamentos impuros. “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação,” diz nosso Senhor e Mestre; vigiai, isto é, preste atenção [p 203] nos pensamentos que você deixa entrar e feche a porta contra intrusos. Ore todos os dias e todas as noites com a confiança de uma criança falando com seu pai:—“Pai nosso que estais no céu, não nos deixe cair em tentação”; e depois, não pense mais no assunto, mas viva ao máximo, a vida bela e completa, de corpo e mente, coração e alma, pela qual nosso Pai fez provisão.

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PARTE IV

VOCAÇÃO

Planos.—‘Serei um limpador de chaminé e usarei uma cartola,’ diz a criança pequena de Frankfort (que raramente vê cartolas, exceto nos limpadores de chaminés), ‘serei taxista e vou dirigir um carro,’ ‘vou ser general e travar uma grande batalha,’ ‘serei uma babá e cuidarei de um bebêzinho lindo,’ ‘vou ser “mãe” e ter meninas e meninos meus,’ dizem as crianças; e mudam de idéia toda semana, porque todo tipo de comércio e profissão lhes interessa, e imaginam como seria bom pertencer a cada um.

O menino ou menina quando cresce um pouco mais, deixa tudo isso para trás como um dos modos ‘tolos’ dos pequenos; mas, aos poucos, o pensamento começa a se agitar na cabeça de um menino sobre qual parte específica do trabalho do mundo ele será chamado a fazer. É bom e agradável pensar que o trabalho, seja ele qual for, será realmente dele, e também será o trabalho do mundo em alguma tarefa desejada. O coração da menina também se move com ansiedade: ela quer uma tarefa, um pouco de trabalho para si mesma no mundo, um trabalho que é [p 205] desejado; isso é o que tanto o garoto quanto a garota quer. Eles entendem as palavras de um grande homem, que disse: “Ser útil é a razão pela qual vale a pena viver.” O garoto sabe que deve sair para o mundo e fazer algo definitivo. Também para uma garota, há muitas carreiras, como são chamadas atualmente, abertas; e, se uma menina é chamada apenas para o lugar agradável de ser uma filha em casa, tudo o que ela precisa desejar é que ‘seja útil,’ e, talvez, nenhuma outra vocação lhe ofereça mais chances de utilidade.

Preparação.—Alguns meninos sabem, desde tenra idade, que estão sendo criados para a marinha, por exemplo. Para outros, meninos e meninas, a vocação não se define até que eles tenham deixado a faculdade.

Todos as vocações têm uma coisa em comum: elas são úteis; e, portanto, uma pessoa pode se preparar para seu chamado anos antes de saber o que é. Que tipo de pessoa é útil no mundo? Você pensa no mais brilhante e bonito de seus amigos e diz a si mesmo: ‘Fulano é uma pessoa que o mundo não poderia prescindir’; mas você pode estar completamente errado. A boa aparência, a inteligência e a esperteza, que dão ao menino ou à menina o primeiro lugar na escola, muitas vezes levam a um banco traseiro no mundo; porque a pessoa com essas qualidades atraentes pode ser como uma embarcação sem lastro, à mercê de ventos e ondas. Ninguém precisa pensar menos de si mesmo e em suas chances de ser útil, porque não possui as qualidades atraentes que admira em outro. Todos nós temos imensas ‘chances,’ como são chamadas; mas o objetivo de cada um é estar pronto para a sua chance. O garoto que recebeu uma medalha da Royal Humane Society por salvar vidas, [p 206] estava pronto para sua chance; ele aprendeu a nadar; mas, também, ele havia se habituado a ter a mente alerta e o temperamento generoso, que o levaram a ver a coisa certa a fazer, e a fazê-la naquele instante, sem pensar no trabalho ou no perigo de sua ação; sem qualquer pensamento, além daquela criatura que lutava e se afundava na água.

Isso ilustra o que eu quero dizer; meninos e meninas, para estarem prontos para suas chances na vida devem ter corpos ativos e bem treinados; mentes alertas, inteligentes e bem informadas; e corações generosos, prontos para ousar e fazer tudo por quem precisar de sua ajuda. São essas pessoas que o mundo deseja, pessoas que trabalharam em todos os hectares desse vasto estado deles que chamamos de Alma Humana; homens e mulheres ordenados nos nervos e treinados nos músculos, autocontrolados e capazes; com imaginação bem guardada, razão bem praticada; amorosos, justos e verdadeiros.

Possibilidades.—Não há nada no mundo tão precioso, tão necessário para os usos do mundo, como um menino ou uma menina preparados nessas linhas para o chamado que possa vir; e é por isso que tentei apresentar-lhe algumas das grandes possibilidades do Reino de Alma Humana. Essas possibilidades pertencem a cada um de nós; e quanto mais percebermos o que podemos ser e o que podemos fazer, mais trabalharemos para responder ao nosso chamado quando ele vier. O garoto que trabalha apenas para passar no ano, ou ser o líder de sua turma, pode conseguir o que quer; mas talvez ninguém seja útil a menos que ele queira ser útil. Isso não é algo que chega a nós casualmente, porque é a melhor coisa da vida; e aquele sujeito que pretende se divertir ou ser o primeiro em qualquer corrida, mesmo a corrida pelas riquezas, [p 207] pode conseguir o que deseja; mas não nos enganemos; ele também não tem a honra de ser útil.

“Saia para trabalhar

Neste mundo!—é a melhor coisa que se ganha.

·····

Trabalho! trabalho!

Certifique-se de que é melhor do que você trabalha para obter.”

E. B. Browning.

O Hábito de ser Útil.—‘O inferno está cheio de boas intenções’ é um ditado terrível com o qual todos estamos familiarizados. Suponho significa que nada é tão fácil de formar como uma boa intenção, e nada tão fácil de quebrar, e que almas perdidas e arruinadas formaram, sem dúvida, muitas boas intenções. Portanto, devemos encarar o fato de que a intenção de ser útil não é suficiente. Devemos adquirir o hábito, a habilidade, da utilidade.

Na maioria das famílias, há o irmão que constrói apitos e faz barquinhos de papel para os irmãos pequenos, que galopa como um cavalo de guerra com Billy nas costas, em quem sua mãe confia com mensagens e seu pai com comissões importantes; ou, há a irmã em cujas saias os bebês se apegam, que aprendeu latim o suficiente para ajudar seus irmãos mais novos em suas tarefas, que pode cortar uma roupa ou aparar um chapéu para ajudar uma das empregadas; que escreve notas para a mãe e ajuda a cuidar do bebê com sarampo.

Os ‘Descuidados.’—Os membros desatentos das famílias—Jack, em cujo bolso uma nota é encontrada três dias depois que devia ter sido entregue, Nellie, cujo pacote se despedaça no correio—dizem: ‘Oh, esse tipo de trabalho bem feito não é problema para Tom e Edith; eles gostam, você sabe.’ É bem verdade que eles gostam, porque [p 208] todos gostamos de fazer o que fazemos bem; mas ninguém pode fazer bem o que ele não teve muita prática em fazer; e você pode confiar que os membros úteis de uma família tenham tido muita prática em ser útil, ou seja, eles tenham procurado suas oportunidades.

Servo ou Mestre?—Cada um de nós tem em sua posse um servo extremamente bom ou um mestre muito ruim, conhecido como Hábito. A pessoa desatenta e apática é serva de hábitos; a pessoa útil e alerta é o mestre de um hábito valioso. O fato é que as coisas que fazemos muitas vezes deixam algum tipo de impressão na própria substância do cérebro; e essa impressão, com mais frequência que é repetida, torna mais fácil fazer a coisa da próxima vez. Sabemos disso muito bem, pois se aplica a patinação, hóquei e coisas do gênero. Dizemos que queremos praticar, ou que estamos fora de prática e que precisamos praticar; mas não percebemos que, em todos os assuntos de nossa vida, a mesma coisa vale. O que temos prática em fazer, podemos fazer com facilidade, enquanto nos debruçamos sobre o que temos pouca prática.

A Lei do Hábito.—Esta é a lei do hábito, que vale tanto para a bondade quanto para o piano. Ambos os hábitos vêm pela prática; e é por isso que é tão importante não perder a chance de fazer bem o que pretendemos fazer. Não devemos nos satisfazer com a noção de que fizemos algo quando apenas formamos uma boa resolução. O poder vem do fazer e não da resolução, e é o hábito que nos serve, seja o hábito da leitura em Latim ou do entalhe. Além disso, e isso é uma coisa agradável de lembrar, toda vez que fazemos algo, [p 209] ajudamos o hábito a se formar; e fazer uma coisa cem vezes sem perder uma chance facilita o resto.

Nosso Chamado.—Sobre isso tenho certeza: de que o chamado, ou, se você preferir dizer, a chance, chega à pessoa que está pronta para isso. É por isso que a preparação geral do corpo, mente, alma e coração é necessária para o jovem cavaleiro que espera ser chamado. Ele vai querer cada parte de si no serviço real que o nomeou; pois é um serviço real. Deus, que fixa os limites de nossa habitação, não nos deixa perdidos em busca da coisa certa; se Ele nos encontra esperando, prontos e dispostos, Ele nos chama. Pode vir no conselho de um amigo, ou em uma oportunidade que possa se apresentar, ou na opinião de nossos pais, ou em outras ocasiões comuns da vida que chegam àqueles que as observam e que não são obstinados; ou pode vir por um forte desejo de nossa parte por algum trabalho específico para o qual nos mostramos adequados.

Mas acho que podemos ter certeza de que o chamado é tão verdadeiro para um lavrador quanto para um colega, para uma leiteria ou para uma duquesa. E cada pessoa, em qualquer lugar, requer preparação para seu chamado; primeiro, a preparação geral de ser uma pessoa pronta e em forma; e segundo, uma preparação especial de treinamento e ensino para o trabalho específico em questão.

Mas, no primeiro estágio de nossa aprendizagem, o tempo da preparação geral, enquanto ainda estamos na escola ou na faculdade, lembremos que cabe a nós nos adequarmos à nossa vocação. O valor de qualquer chamado depende dele ser útil; [p 210] e nenhum dia pode se passar sem nos dar prática em utilidade.

Cada um é chamado para o trabalho especial para o qual está apto; e, para cada um a verdade é que—

“Você não está no seu lugar por acidente:

É o exato lugar que Deus te deu.”


[1] Cópias de Calúnia, de Botticelli podem ser obtidas com o Sr. G. Cole, na 17 Via Torna Buoni, Florença, por 1 lira (10d.) ou mais.