Como Ensinamos Literatura
Tradução do “How We Teach Literature” para o português por Mardônio Chaves e Camila Lavôr ©2020.
Nota do editor por Richele Baburina:
Em maio de 1913, Daphne Chaplin estava entre os cinco ex-alunos da Casa da Educação que se dirigiram aos participantes da Conferência anual da PNEU, que tinha por tema: como certas disciplinas são ensinadas na Parents’ Union School. A srta. Chaplin focou-se no ensino de Literatura.
Seu artigo, embora curto, consegue reunir as ideias centrais do papel da literatura na educação inspirada por Mason, além de responder a algumas das mesmas questões que nos preocupam hoje, como o papel do professor, o uso de versões resumidas, a censura, a narração e a composição. Ela também detalha um passo importante que preenche a lacuna entre a narração oral e a escrita. Embora concisa, a Srta. Chaplin não desfolha completamente a paisagem; antes, apresenta com humor e ânimo o trabalho de cada forma como um campo cada vez mais amplo.
Por Daphne Chaplin
The Parents’ Review, 1913, pp. 528-532, 546-547
Foi dito por Salomão, o sábio Rei: “O muito estudar é enfado da carne.” Isso, de todo modo, não se aplica aos estudos literários das alunas da Parents’ Union School. Ao passar os olhos pela programação de todas as nossas turmas, da Ia à classe IV, fico impressionada com a continuidade do trabalho. Não há um momento sequer em que as crianças digam (para si mesmas): “Se estamos falando de literatura, eu já tive o suficiente” – sentimento que muitas vezes ouvi dos alunos exauridos da Clarendon Press.
Na Turma Ia, damos dignidade à aula conferindo-lhe o nome de “Contos” e sempre consideramos a literatura como a narrativa da riqueza de ideias que há no mundo, refira-se ela a pessoas ou coisas, ao concreto ou ao abstrato.
Uma vez que este artigo trata sobretudo de “Como ensinamos literatura na Parents’ Union School”, permitam-me dizer de cara que não a ensinamos no sentido de impor à turma determinada uma passagem ou autor; antes, seria mais correto dizer que lemos com as alunas, empregando tanto nossa inteligência e experiência, que são mais maduras, a fim de ajudar as delas, quanto, acima de tudo, nosso entusiasmo. É o entusiasmo pela leitura o que queremos incentivar. De todas as disciplinas, a literatura é a mais ampla, e se fizermos as crianças gostarem de ler, apreciarem um bom estilo, identificarem os diversos tratamentos dados a um assunto, no futuro elas não ficarão presas a uma só forma de leitura, ou mesmo a um só tipo de romance.
Deixe-me esboçar brevemente o trabalho previsto para as nossas turmas na Parents’ Union School:—
Turmas Ia. e Ib.—Contos e narração por parte das alunas.
Turma II.—Shakespeare em voz alta; Scott, Plutarco e uma narração mais precisa, ou ainda relatos escritos de parte do que foi lido.
Turma III.—Breve história da Literatura Inglesa, leitura mais ampla, composição.
Turma IV.—Nenhum livro didático, mas uma variedade ainda maior, abrangendo cartas, memórias, autobiografias, livros de viagem etc. Resumos e tentativas de escrever em determinados estilos.
Com a permissão dos senhores, tentarei explicar esses pontos mais detalhadamente. O objetivo geral de nossas aulas de literatura está em que as crianças se familiarizem com o melhor, de modo a que não “sirvam para nada” aqueles escritos inferiores que abundam por aí.
O gosto delas deve ser formado desde o início; portanto, não é qualquer história que servirá, e isso mesmo aos seis anos de idade. Usamos livros como Tanglewood Tales, Tales of Troy and Greece, Heroes of Asgard, ao mesmo tempo que desencorajamos profundamente o blá-blá-blá mal escrito e autocentrado sobre a tal Susie à beira-mar, bem como todas as coisas insípidas ou assustadoras que lhe aconteceram a ela ali. Obviamente, não quero dizer que devemos, por uma censura impensada, nos afastar das preferências naturais das crianças; antes, acreditamos (e a experiência assim nos mostra) que, ao mostrar-lhes o que há de melhor, o que pertence ao segundo escalão e o que é trivial se tornam desagradáveis para elas.
Depois de ouvir uma história ou parte de uma história, as alunas das Turmas Ia. e Ib. Tentam, uma de cada vez, narrar o que ouviram, a fim de que toda a passagem seja recontada. Mesmo ali não é muito cedo para exigir que falem bem e que tornem sua história inteligível e agradável de ouvir. Raras vezes é necessário insistir na precisão; essa é uma virtude mais comum às crianças do que aos mais velhos.
Minha experiência revela que, ao narrar, algumas crianças inconscientemente adotam o estilo do original, e pouquíssimas delas são capazes de terminar uma passagem sem usar algumas das expressões originais. Nós afastamos a possibilidade da imitação servil de determinado estilo dando-lhes muitos livros de diferentes autores.
Na Turma II., as alunas têm entre nove e doze anos, e as aulas de literatura recobram seu vigor graças ao interesse e ao prazer da leitura em voz alta. Assim, mesmo sendo tão jovens, elas passam a conhecer e apreciar Shakespeare; não há muita gente por aí que o faça. Em cada semestre elas leem uma peça, atentando somente para o ritmo e à beleza dos versos, aos segmentos descritivos mais simples. Outro dia, conheci uma criança que simpatizava com César e que achava que Bruto cometera um grande erro. Pergunto-me quantas vezes a professora impõe sua visão ao aluno – a visão do adulto, que carece da simplicidade infantil. Um dos princípios mais fortes da Srta. Mason é aquele segundo o qual o professor deve deixar o livro falar por si só. Ela, portanto, censura todos os livros que não sejam os melhores, e edições condensadas nunca são usadas.
Então as alunas começam a formar o hábito da boa leitura em voz alta. Fico me perguntando por que dizem que ler mal em voz alta não passa de um pequeno infortúnio. Na verdade, há quem chegue a considerá-lo uma virtude, partindo do princípio de que apenas os vaidosos, os egoístas ou os excêntricos esquecem a si mesmos em favor daquilo que estão dizendo. É bem verdade que algumas crianças parecem nascer com certa intuição em relação às palavras. Uma aluna que sequer consegue ler com fluência poderá mostrar-se interessante, enfatizando miraculosamente a palavra certa e adotando as inflexões corretas, não obstante leia a frase aos trancos e barrancos.
No entanto, estou certa de que cabe a nós dominar com maestria nossas línguas e nosso idioma, e todos os que praticam e desejam fazê-lo são capazes de ler em voz alta de maneira inteligente e agradável, contanto que entendam e apreciem o que leem.
A Srta. Mason, em seu planejamento, recomenda livros para a leitura em casa, uma vez que acredita que o que lemos é, em grande parte, uma questão de hábito. Certamente, o hábito das revistas é adquirido pelas crianças que, além de jogos e lições, não têm “nada para fazer”. É muito importante que nesse momento recebam um livro que valha a pena ser lido. Penso que histórias de revistas são o último refúgio dos preguiçosos.
As crianças têm tanto tempo, e suas mentes são tão receptivas, que é agora que elas devem formar o hábito de ler de maneira inteligente – de maneira exaustiva, eu diria. É também agora que suas memórias retêm mais coisas, e parece imensa crueldade enchê-las de lixo quando há tanta coisa que vale a pena lembrar. A meu ver, nunca é exagerada a luta contra a leitura esporádica.
Já demos então conta da formação literária das crianças de seis a doze anos.
No que ela consiste?
Na capacidade de escutar; na capacidade de distinguir; na capacidade de narrar; na capacidade de ler em voz alta com vigor e compreensão, bem como no poder de encarar um livro de verdade, a mensagem de alguém que tem algo urgente a lhe contar. É isso o que um livro deve significar para a criança – e assim será se dermos a ela livros deste tipo (os quais existem às centenas), se nos dermos o trabalho de colocá-los em seu caminho.
Na Turma III., mantemos seu interesse vivo ao permitir que as alunas tenham uma visão mais ampla. Elas leem a literatura de seu período histórico, travando contato pessoal com o maior número de autores possível, numa intimidade que acaba por ser aprimorada pelo conhecimento dos acontecimentos e costumes do período.
Elas também aprendem poesia de cor, o que na verdade sempre fizeram, ou mesmo cenas de peças de teatro. E, o que é ainda mais importante, as alunas escrevem elas mesmas. Isso parece desconcertante, mas na verdade não passa de uma maneira de fazer as crianças se interessarem mais pelos esforços das outras pessoas. Na minha opinião, esse é o valor dessa atividade, um valor muito real. Afinal, o que é a literatura? São pensamentos escritos, pensamentos tão bem expressos e tão perenes que resistiram ao teste do tempo. Faça a criança entender isso e você terá tocado aquela nota pessoal sem a qual ela nunca poderá se tornar uma pessoa das letras. Recentemente, isso vem acontecendo no ensino da música. As crianças que seguem os métodos de Yorke Trotter, Curwen, Spencere outros semelhantes começam logo a compor pequenas músicas, usando para isso determinados acordes, determinadas teclas etc. Não o fazem, imagino eu, na crença de que essas composições sejam valiosas em si mesmas, mas para que possam entender as linhas em que nossos grandes compositores trabalharam e apreciar melhor seus ótimos resultados. Acho que é por isso que a Srta. Mason gosta que a criança escreva.
Ela, porém, não deve escrever por conta própria, o que exigiria genialidade. “Nada pode vir do nada.” A criança deve escrever sobre determinado assunto e, talvez, num determinado estilo, e lembre-se de que este é o resultado daqueles seis anos de narração habitual. Creio que foi Robert Louis Stevenson quem, mesmo sabendo que sabia escrever bem, ainda passava horas copiando o estilo de um de seus heróis da literatura.
Essa prática, portanto, não deve ser tomada como perda de tempo quando se trata de alunos que não são geniais; além disso, o gosto pela literatura que eles provavelmente hão de criar fará mais para aguçar o apetite literário do que toda e qualquer sugestão. É nosso dever preparar-nos para apreciar a genialidade, e não precisamos de nenhum dom celestial para conseguir fazê-lo.
Na Turma IV., já nos aproximamos do fim de nossa tarefa, que era devolver a criança da escola com um interesse duradouro pelos livros, com uma capacidade crítica bem desenvolvida, com aptidão para apreciar o tema e o estilo dos livros e com uma aversão absoluta por qualquer coisa indigna ou inferior.
Na Turma IV., estamos lidando com meninas de quinze a dezoito anos que já possuem uma ampla gama de conhecimento literário. Seguimos os mesmos métodos, aumentando seu alcance. Em vez de um material didático sobre Literatura Inglesa, elas leem ainda mais dos autores escolhidos. Elas tecem comparações e críticas, quando antes o objetivo estava na apreciação. Tanto na turma III quanto na turma IV, haverá ocasiões para que o professor fale sobre um autor ou um livro que seja desconhecido às alunas. Nessas lições, a professora terá a oportunidade de oferecer às meninas um amplo ponto de vista humano, que ainda assim em nada cederá ao baixo tom moral com o qual elas talvez tenham de lidar.
No que diz respeito à leitura de romances, a Srta. Mason acredita serem eles mais úteis para comunicar experiência aos inexperientes. Nesse ponto, permitam-me ler dois parágrafos de Nós mesmos que tratam disso.
Romances.—Os romances, repito, são como homilias para os sábios; não, porém, se os lermos somente pela história. Trata-se de uma vil perda de tempo ler um romance que você pode pular ou a cuja última página você pode recorrer para saber como termina. É preciso lê-los para aprender o sentido da vida; e, ao final, devemos saber quem disse o quê e em que ocasião! Os personagens dos livros que conhecemos se tornam nossos mentores ou nossos alertas; são nossos instrutores sempre. Isso, porém, não ocorre se deixamos que nossa mente se comporte como uma peneira pela qual o todo desliza como água.
Seria, obviamente, uma insensata perda de tempo dedicar esse tipo de leitura cuidadosa a um romance que não tem valor literário ou moral. Portanto, fazemos bem em nos limitar ao que há de melhor – aos romances que podemos ler muitas vezes, e cada vez com maior prazer. A superficialidade com a qual se lê fica clara ante o fato de que 99 em cada 100 pessoas nutrem a ideia de que Thackeray nos apresenta Amelia como uma mulher ideal. Poucos captam a solene moral da história: a de que um homem não pode dar a uma mulher mais do que ela vale. Tampouco captam que Dobbin, o fiel Dobbin, não encontrou sua vida em Amelia, mas em seus livros e em sua filha. É bom que escolhamos nossos autores com discernimento, do mesmo modo como escolhemos nossos amigos, e que depois esperemos respeitosamente para ouvir o que eles têm a nos dizer.[1]
Concluindo, acrescentarei apenas uma amostra do trabalho realizado por esse método de ensino. Darei aos senhores, primeiro, o livro; depois, a pergunta feita; em terceiro lugar, a resposta dada, referente a cada turma.
[1] O texto de Nós mesmos, pp. 72-73, não está incluído no artigo original.